Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 30-04-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 17-05-2013

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    Sabor a maio

    Nas viagens de regresso a casa vou pensando... sempre atenta a tudo. A “saborear” a primavera neste maio, divagava sobre os pensamentos se sentou junto de mim o Sr. Américo, um senhor que vem de tempos “que já lá vão”, nascido em 1923. Lúcido, começou, na conversa, a desfiar os trabalhos que passou durante toda a sua vida. Olhei o seu rosto, cheio de rugas de sabedoria (sentia-se isso na conversa que lhe ouvia) e atrevi-me a perguntar-lhe se me autorizava a falar com ele num outro dia, para registar e aprender sobre tempos de vida que não foram os meus. Era um outro “sabor a maio”, o mês que começa com o Dia dos Trabalhadores.

    Disse-me que não havia problemas e eu, percebendo que ele era “mais conhecido do que o tremoço” em paragens de Gueifães, fui ter com ele no dia seguinte e encontrei-o no tasquinho que existe em frente à igreja, em finais de dia. Aí ia chegando gente que vinha do trabalho, na procura dos petiscos conhecidos da nossa gastronomia tradicional e também com o intuito de dar duas de treta com amigos, antes de recolher a casa.

    Encetámos uma conversa a que pouco e pouco se foram adicionando espetadores – gente preocupada e que queria perceber se eu estaria a fazer algo de errado com o “seu amigo”, porque percebi que é assim que reconhecem o Sr. Américo, o símbolo de tudo o que representa – um passado do que foi e um futuro do que seremos nós. Comecei também a perceber que este senhor, de uma certa forma, representaria todas as crianças a quem (por necessidades diversas), foi retirado o direito à infância porque precisaram de crescer rápido demais – começou a trabalhar aos 9 anos na arte da ourivesaria (profissão que nunca mais abandonou).

    Aprendiz, durante muito tempo recebia como pagamento a simples refeição. Quando se fez homem e experiente, conta com orgulho que um brasileiro (negociante de ouro) queria levá-lo para o Brasil mas o seu patrão, para não o perder para a concorrência, ofereceu-lhe um “dinheirão” para a época – 50 escudos por dia – e aqui ele usa como comparação o que a essa data ganhava o seu pai, calceteiro de profissão, cerca de 10 escudos por dia. Ficou em Portugal e constituiu a sua família, que se alargou a 10 filhos. Dizia que foram tempos duros e eu nem sequer precisava que os amigos acenassem a cabeça anuindo e confirmando os seus desabafos – bastava olhar para as “rugas do tempo” e uns olhos cansados quando me dizia, até a medo, «eu não quero problemas com isto, minha senhora, agora estou só à espera da minha hora para partir porque eu já sofri tanto e já trabalhei tanto!».

    Fotos GL
    Fotos GL
    Sosseguei-o explicando-lhe que também eu não queria prejudicá-lo de forma alguma, ainda mais que a ideia do “jornal” o assustava – pudera!, à conta disso aos 18 anos, “em tempos que já lá vão” pelo facto de lhe terem dado um jornal “errado” para o seu tempo, pagou caro, demasiado caro, ainda mais que nunca deixava de falar no desgosto e sofrimento que isso trouxe também à sua “santa mãe”, quando numa madrugada o foram buscar a casa. Lá, no meio da gente em quem confiava, as pessoas conheciam a sua história e respeitavam-lhe a coragem que a vida lhe deu para, no futuro, ir sempre em defesa do que considerava justo.

    Por isso gostavam de o ter lá, “entre eles”, enquanto espera pela hora de apanhar o autocarro que o leva para casa, onde vive aconchegado pelo amor dos seus e pode descansar da coragem tremenda que precisa de ter logo pela manhã, para se levantar e dar força às pernas perras que o sustêm, já a custo, mas onde ainda quem manda é a sua teimosia de querer.

    A conversa com o Sr. Américo trouxe-me a reflexão triste que é fácil perceber-se que os ventos que levaram estes tempos voltaram a trazê-los (com o senão da natalidade a regredir a olhos vistos), voltamos ao medo de dar opiniões e ser conotados com o que quer que seja, mas isso vai sempre depender da forma como formos “olhados” e do caráter de quem nos avalia.

    Diz-se que “burro velho não aprende línguas” e em tempos que já lá vão eu nem seria muito atenta a estes pormenores, mas o vento encarregou-se de me trazer essa atenção. Mesmo reconhecendo e respeitando a opção ou necessidade de quem tem que trabalhar neste dia, uma coisa eu gosto de lembrar neste maio: a 1 de maio será sempre lembrado o Dia do Trabalhador.

    Depois, em dias que lhe sucedem, todos sabemos que vêm as cerejas, aquelas que o gaio não leva porque, que lá diz o povo – “em maio as cerejas uma a uma leva-as o gaio; em junho a cesto e a punho”. E seguidamente começa a saber a verão e começamos a pensar em férias. Por isso gostei de parar a falar com o Sr. Américo. “Quem em maio não merenda, com os mortos se encomenda”, daí que espero que ele merende durante muito tempo junto de quem o ama e de amigos que o respeitam, que o estimam e que o protegem.

    Também me soube bem ver que ainda se mantêm estes pequenos comércios locais que existem espalhados pelo nosso país, onde existe a tradição da “merenda”, um “culto” bem português!

    Por: Glória Leitão

     

    Outras Notícias

    · Para além das aparências

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].