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    Arquivo: Edição de 17-07-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    Onde se misturam a poesia de Mao-Tsé-Tung, um abalo telúrico de reduzidas dimensões, arroz de lulas e outras pequenas histórias com as mesmas personagens

    A referência a um Mao-Tsé-Tung poeta há de deixar surpreendidos muitos leitores. Tratar-se-á de um homónimo do Grande Timoneiro que liderou a Longa Marcha e se tornou um dos maiores estadistas do século XX? Ou será a versão chinesa do nosso Gil Vicente, o genial dramaturgo do século XVI, presumível ourives, autor da monumental Custódia de Belém? Enquanto Mao-Tsé-Tung, que os nossos revolucionários pró-chineses chamavam Mao-Zedong foi, de facto, político e poeta, entre nós continua pairando a dúvida sobre a identidade do Gil Vicente ourives. Será ele o autor de “A Barca do Inferno” e de tantas outras grandes obras literárias ou tratar-se-á de outra pessoa que tinha o mesmo nome, à época bastante vulgar? Mao-Tsé-Tung todos conhecíamos, todavia, quando o Dr. Ferreira de Brito, professor de Literatura Francesa I-II nos propôs a realização de um trabalho baseado nos Poemas de Mao, entreolhámo-nos como se ele estivesse a mangar connosco. Que relação existiria entre o celebrado revolucionário chinês e a Literatura Francesa? Bem comportados como éramos, aceitámos a decisão de que a resposta teria que ser dada por nós e, informados sobre o nome do livro que constituiria o nosso objeto de reflexão e análise, entrámos na fase de investigação e planeamento.

    A razão pela qual o professor nos confiou esse estranho tema de trabalho justificava-se pelo conhecimento que já possuía acerca de nós. Enquanto a maioria da turma era constituída por mulheres – e não digo apenas moças porque havia alunas bem mais maduras – nós estávamos incluídos no grupo que a Teresa Campos, jocosamente, apelidava de C&P. Dizia ela que os colegas masculinos ou eram já casados ou eram padres, o chão da Faculdade não era propício ao florescimento de romances. Com efeito, do nosso grupo de trabalho dois éramos casados já com descendência, o terceiro era um sacerdote da diocese de Coimbra devidamente autorizado pelo respetivo Bispo. Éramos bons alunos e a nossa condição trazia implícita a garantia de responsabilidade. Tínhamo-nos associado pelo conceito favorável que fazíamos uns dos outros e por uma amizade que começava a ganhar forma e que perdura. Estávamos no terceiro ano de Românicas (Filologia Românica) e a empresa assim formada haveria de render futuros trabalhos em diversas cadeiras. Mas o que imediatamente lembramos, nos raros encontros que temos tido após a conclusão do Curso, é esse trabalho sobre Mao-Tsé-Tung cuja referência basta para nos arrancar sonoras gargalhadas à medida que desfiamos os episódios que constituíram todo o enredo. O Padre Velho residia numa unidade hoteleira ligada a uma instituição assistencial, no centro do Porto, o que ligava muito bem com a sua condição de eclesiástico. Dispunha de confortáveis instalações e tratamento VIP por ele retribuídos, como é natural, no acompanhamento religioso de todo o pessoal da casa. Os seus pedidos eram ordens e, assim, não admira que pusessem, de imediato, ao seu dispor um salão na parte superior do edifício quando solicitou um local adequado para reunir com dois colegas da Faculdade com os quais ia realizar um trabalho. Uma vez combinados entre nós a data e o horário, o Padre Velho anunciou que teria lugar na casa onde se encontrava hospedado. Nesse tempo, eu vivia na Rua dos Bragas, um pouco acima da antiga Faculdade de Engenharia, enquanto o Oliveira vinha de Ermesinde no trolleybus ronceiro que ligava a vila à Baixa portuense. Rigorosamente à hora marcada lá nos encontrámos e, por escadas interiores de madeira, fomos conduzidos ao salão que nos haviam preparado. O Padre Velho fez as honras da casa e o trabalho começou de pronto com a definição do esquema e a entrega das tarefas a realizar por cada um de nós.

    Não espere o leitor que descreva como as coisas aconteceram, em que momento e como nos apercebemos, cada qual a seu tempo ainda que separados por segundos ou frações de segundo, de que a Terra tremia, porque nem eu sei. A memória registou apenas um rápido estremecimento do piso, o que não chegou a ser o tilintar de copos no móvel/cristaleira, apenas um brevíssimo e longínquo som vagamente musical a que o Oliveira reagiu de imediato galgando os degraus das escadas, talvez não de quatro em quatro mas de seis em seis ou de oito em oito degraus. Num instantinho, ele estava cá em baixo, enquanto nós ainda íamos sensivelmente a meio do escadario. Não teve sequer ocasião de ver e ouvir o vaivém alvoroçado de funcionárias e hóspedes, o abrir de portas que não se fechavam, as exclamações e chamamentos já de todo desnecessários porquanto não se registaram réplicas nem houve prejuízos ou ferimentos. O nosso reencontro aconteceu já na rua e serviu apenas para um “até amanhã” pressuroso.

    A convite do Oliveira, a segunda sessão de trabalho foi marcada para umas semanas mais tarde em sua casa. Oferecia-nos o almoço e disporíamos da tarde para trabalhar. Já tínhamos um esboço delineado. Fizéramos a leitura atenta do livro de poemas, os segmentos ideológicos que o atravessavam e o resumiam, estabelecêramos as linhas mestras do trabalho. A abordagem era nova considerando a realidade chinesa, os temas da poesia maoísta e da ideologia subjacente. Mas conseguíramos encontrar um caminho de análise isenta de preconceitos. A verdade é que, em nossos cérebros, ressoavam as imagens provenientes desse povo longínquo e do seu penoso viver como atestam os versos do poema Kuenluen:

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    Alongado no espaço e dominando o mundo

    Kuenluen, o Gigante, viu tudo quanto é belo na terra!

    Três milhões de brancos dragões de jade aí tomam impulso,

    Todo o céu está transido de frio.

    Com o degelo no Verão.

    A cheia faz transbordar os rios,

    E o homem, por vezes, é reduzido a peixe ou tartaruga

    Sobre os seus méritos ou crimes milenários

    Quem teria feito o mais pequeno julgamento?

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    O Padre Velho ofereceu-se para me transportar no seu automóvel que só costumava utilizar para as deslocações à Tocha onde vivia a sua idosa mãe ou a Coimbra para falar com o Bispo. Entre comentários acerca da vida na Universidade, frequências, classificações, professores e os “fait divers” de uma instituição como aquela, falámos do que nos aguardava. Eu sabia que o Oliveira, tal como eu, possuía um eletrodoméstico, recentemente introduzido no mercado, para cozinhar refeições na ausência de todos os elementos da família. Bastava provê-lo dos ingredientes necessários ao prato que se desejava preparar, ligá-lo à corrente elétrica e ele faria o resto, desligando quando o processo estivesse concluído. Imagino que o Oliveira estivesse ligado à Mijoteuse e ao cozinhado no decurso das aulas bem mais vivas e participadas nesse ano que sucedeu ao Movimento dos Capitães. A propósito do almoço, o Padre Velho foi dizendo que não tinha preferências, só esperava que o nosso colega não tivesse arranjado lulas. Parece que estou a ver o entusiasmo do Oliveira a destapar a panela donde se desprendia um acentuado cheiro àquele molusco e a nossa troca de olhares que o deixou intrigado:

    - O que foi que aconteceu?! Esta máquina é uma maravilha, cozinha melhor do que muitas mulheres. – justificou ele convencido de que receássemos pelo êxito da cozedura.

    - Eu sei, – respondi a tranquilizá-lo – eu também tenho uma. Deixamo-la sempre a trabalhar quando saímos para a escola, de manhã.

    O Padre Velho não quis desgostar o amigo e fez o que pôde para honrá-lo, com sacrificado apetite.

    Por: Nuno Afonso

     

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