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    Arquivo: Edição de 10-07-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    O dinossauro Pedro e a libelinha Nina

    Mais uma vez fui desenhando um texto em dia que regressava a casa e, no percurso que fazia a pé, acompanhada pelas estrelas, enquanto as pessoas assistiam a mais um acontecimento importante, um desafio de futebol que poderá dizer-se quase fez parar um país e ainda dava um mote para se reunirem famílias ou, em muitos casos amigos num convívio que permitia que todos, em equipa e de forma partilhada, vivenciassem emoções, sofressem desaires ou festejassem vitórias.

    Tinha muito que refletir no caminho que ia percorrendo e em que o fiz lentamente, deliciando-me com a temperatura amena da noite que se fazia sentir – tinha conhecido mais uma pessoa fantástica neste trabalho de “part time” que faço para pagar a despesa que tive por frequentar uma escola de gente grande e que normalmente se chama faculdade e, quando esta pessoa me pergunta qual foi a sensação que tive por ter lá entrado já adulta, no meu caso com 50 anos, respondi-lhe: uma sensação única – unir os pontos que convergem e fecham a pirâmide de Maslow e também ter o bom senso de perceber que ia ter que descer lentamente essa pirâmide e preparar-me para construir uma nova, de raiz e assente em cima dos escombros de uma vida que tinha desmoronado.

    Engraçado que a uma dada altura em que fazia a abordagem do meu trabalho junto desta pessoa, ela disse: «A senhora gosta mesmo do que faz», e eu respondi-lhe: «Pudera!..., além do desafio que é, dos conhecimentos que fundamentam uma “tese de mestrado” muito própria e muito minha, fazendo-me ser cobaia de um projeto que é o meu: construir-me como ser humano e sempre citando Pessoa («nós somos a maior empresa do mundo»), faz-me conhecer gente fantástica e cada vez mais ganhar amor a um País que tem gente dentro – pessoas cheias de valor, cheias de saber, cheias de competência, cheias de capacidade e cheias de paixão e entusiasmo por aquilo que fazem.

    Neste dia, em particular, tinha perante mim um professor apaixonado por aprender, tendo em conta que já conta com duas licenciaturas, e ensinar miúdos. Um “dinossauro” da vida, como fazia questão de se conotar, como pessoa e como carácter combativo que teimava em não abandonar. E isto cruzava-se com um mail que tinha recebido na véspera de alguém amigo, que festejava nesse mesmo dia 34 anos de trabalho dedicado sempre à mesma empresa e se interrogava se o tempo que o fez ficar aqueles anos todos dentro das mesmas quatro paredes tinha valido a pena – o que teria feito de novo, o que tinha refeito em relação ao que fez, o que perdeu por não conhecer outras realidades fora de portas, que tipo de aventuras ou desventuras deixou de vivenciar e fazê-lo aprender.

    No caso de uma pessoa que merecia acima de tudo uma resposta sentida e sincera, porque se trata da mesma que um dia, e quando toda a gente achou que a melhor atitude era deixar ver no que ia dar a minha vida ele se atreveu e teve a coragem de me mandar o tal mail, que apesar de isto se ter passado há mais de dois anos, ainda hoje me emociona. E onde estava lá escrito “como estás?”, precisei de ponderar no que queria colocar lá e optei por fazer um brainstorming, sinalizando os motivos porque pensava tudo ter valido a pena.

    Quando olhava para o rosto dos seus filhos; quando olhava para dentro dele; quando errou e aprendeu; quando aprendeu a esconder o choro no riso; quando ficou, quando tinha vontade de partir; quando amou alguém que não tenha ficado; quando aprendeu que o amor não era amor; quando a vida o transformou no excelente ser humano que é e se calhar muitos outros motivos que me tinha esquecido de enumerar, e aí optei por lhe recomendar que nunca se esquecesse que a vida não tinha ainda terminado e ia durar no tempo que lhe estivesse destinado para a viver e que esta vai ser sempre como a tal caixa de chocolates em que o gosto doce, ou amargo/doce vai sempre dar prazer a alguém.

    E precisei de lhe dizer isso porque num trabalho em que palmilho metros e quilómetros sem fim, num país que tem pessoas dentro com vidas e alegrias e tristezas sem fim, é nisso que eu tenho que acreditar, ainda mais que logo no dia seguinte fundamentava e pensava que não me tinha desviado muito da verdade que me conforta porque encontrava este “dinossauro”, com uma paixão por ensinar jovens, por abraçar causas em que acreditar, por se recusar cruzar os braços, por ter a coragem de ser teimoso e levantar-se da cadeira do inconformismo, mesmo também questionando-se muitas vezes se este esforço e entrega valerão a pena.

    Ao encontrar pessoas como esta, que estão integradas em comunidades que se cruzam com autarquias que têm formas de gestão diferentes, porque têm orientações políticas diferentes, isso leva-me à minha liberdade como “outsider” em crenças ou convicções e aqui focalizo-me em Ermesinde, onde estou a integrar a tal task force que acorreu ao tal chamado do tal jornal teimoso, e que fez sentar à mesma as pessoas que, por diferentes motivos, querem ajudar e lutar pela sua manutenção, porque também se torna querido para todos nós e foi gratificante ver diferentes gerações interagirem e contribuírem de forma graciosa com o que de melhor têm de si, acreditando também que ainda vale a pena.

    Não posso arriscar-me a enumerar toda a gente que está envolvida nesta causa, porque seguramente me iria falhar alguém. Daí que escolho como exemplo desta convicção a nossa “mascote”: a Marta, que com 15 anos já tem o espírito guerreiro de uma grande pessoa e que escreve, conquista prémios por aí fora e muitas vezes acompanha em reportagem e faz parceria com uma outra grande dama, “camuflada” no aspeto franzino de uma senhora ruiva sempre com ar de menina e apaixonada pelas reportagens fotográficas e já perceberam que escolho um outro topo de gerações porque falamos da D.ª Ursula – que em idade já se encontra na equipa a que também pertenço – “os cinquentões” e todos os que começam a somar dígitos a este número.

    Sabe Professor Pedro, o senhor que tem a função nobre de ensinar, entre tantas outras coisas que faz em prol de tantos que precisam de orientação e me ajuda também a mim, ensinou-me uma coisa de que eu não fazia sequer ideia e isto foi quando tive a honra de passar pela sua casa em que fui recebida como se de família se tratasse – eu não sabia mesmo que os “dinossauros” também se emocionam e vi isso nos seus olhos que se humedeceram quando me mostrou o livro editado pela sua escola e onde tem lá os versos simples daquele menino que é lá vosso aluno e também fiquei contente pela vossa teimosia e coragem.

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    Eu também já tinha visto um outro livro idêntico, de uma outra escola de uma outra cidade e que fez com uma menina que eu conheço, a Inês, que por acaso também é “de Castro”, recebesse um prémio que foi importante para ela mas também para uma mãe que é minha colega de trabalho e nos mostrava orgulhosa o livro editado com versos de meninos como ela – tudo apoiado por gente que ensina, a quem chamamos professores, que apesar de tudo ainda acreditam, e mesmo que assim não seja, têm que passar essa mensagem aos “miúdos”, que vão ser os adultos do nosso país.

    Eu penso que estão a fazer um bom trabalho nas escolas porque quando vejo a Geni, uma mãe “desesperada” por ter uma miúda irreverente, refilona, porque contesta aquilo com que não concorda, porque começa a formar uma opinião que é a dela e delineia-se o tal carácter combativo do desassossego de que este país precisa, enchendo-se de gente que acha que ainda vale a pena, é seguramente um dos vossos grandes contributos porque até eu, me tornei muito mais refilona, assertiva e irreverente depois de ter passado pela tal escola de gente grande – a faculdade, lutando por aquilo tudo o que penso valer a pena e é tanto.

    Aqui no gabinete rimo-nos muitas vezes do desespero desta mãe da Inês que, por acaso, frequenta uma das escolas do concelho de Gondomar, mas que para mim representa todas as crianças que acho devem crescer com educação e carácter, pensando e opinando com questões mas também ajudando com soluções, sendo ensinada por professores “dinossáuricos” e aqui também concordo quando o Professor Pedro diz não ser o único, mesmo na sua escola, uma das muitas que pertencem ao concelho da Maia, onde dá as suas aulas a meninos irrequietos, traquinas e que também precisam muito do apoio dos professores que em muitos casos substituem os próprios pais, por motivos que nem me atrevo a enumerar.

    Falo de professores e da missão nobre que têm – ensinar. E agora focalizo-me numa pessoa que acabamos de perder e que morava no prédio onde está instalado o nosso gabinete de trabalho e era o amigo de toda a gente e também do nosso Centro de Animação, aqui nas Saibreiras – o Professor Eduardo, como carinhosamente todos o tratávamos.

    Uma pessoa que era “amarga”, porque o mundo não mudava na proporção que ele queria, mas também rapidamente abandonava o seu lado “contestatário” quando encontrava alguém amigo que o distraía e fazia sair o seu lado humorístico e bem disposto. Este professor era um homem de crenças e convicções fortes, se calhar mais fortes que ele mesmo e esta notícia abalou-nos profundamente. Um dia tínhamos afixado um conto que ele escreveu em 1965 e foi publicado num jornal da época, e agora recordávamos o seu ar de “triunfo” por o ter encontrado no meio dos seus arquivos – a prova de que precisava para que não duvidássemos da sua palavra. Quando o lemos, em 2011, percebemos que estava lá descrito um pouco do seu percurso de vida, a antevisão do que o esperava e que nos foi contando enquanto conviveu connosco. A ironia da vida foi que o conto de chamava “Ninguém”, e terminava: «(...) Talvez Deus a tivesse ouvido, quem sabe?!. Ele dissera: “Meu filho…». E lá, manuscrito estão duas palavras que nos disse emocionado pertencerem ao seu pai e onde podemos ler “muito bem”.

    Aí onde está, Professor Eduardo, deve ter visto que ontem recebi uma chamada de uma menina que me disse ter uma mensagem no telemóvel: «O seu pai morreu». Confirmei que era uma das suas filhas e aqui penso que respiramos de alívio porque a sua família estendia-lhe a mão e vinha buscá-lo para lhe dar o funeral digno que merece e também sabemos que todas as suas recordações de uma vida que guardava e protegia religiosamente já não vão para a mão de “ninguém” e se calhar, quando entrarem no seu mundo vão perceber que o senhor só tinha uma estranha forma de amar e também que agora merece descansar, em paz.

    Nestes “post’its” coloquei algumas ponderações que levam a um fio condutor – crenças, lutas por um ideal, inconformismo e a vontade de contribuir para a mudança. Aqui, a única coisa que diverge é que nem todos podem ter e conviver com uma libelinha como a da minha crónica, que tem nome e é carinhosamente chamada por Nina, a retaguarda e o pilar fundamental de um “dinossauro”, e é muito giro ver como convivem de forma harmoniosa num espaço que parece um “casulinho”, onde se sente cultura, se cheira cultura, se partilha cultura e acima de tudo muita compreensão e humildade.

    Porque agora seguiu outro caminho e especialmente para si, Professor Eduardo, preciso de dizer-lhe que se comecei a escrever a crónica ao som da música “Bolero”, de Ravel, terminei-a ouvindo a música “Allegria”, e sei que ficará contente por saber que se ontem, quando nos deram a notícia de que tinha partido, nos apetecia chorar a todos, mas penso não o fizemos porque nos inspiramos na sua atitude altiva e de coragem e continuamos o nosso trabalho, pois, quase de certeza que nos ia citar aquele “cliché” – “the show must go on”.

    Claro que nos amenizou bastante a dorzinha que a sua falta nos vai fazer o facto de ter passado aqui pelo nosso gabinete a Inês de Castro, que é uma menina igual a todas as meninas, que chora quando vê a irmã sofrer ou quando perde uma amizade e que também é de fácil riso, porque ri de coisas tão simples como ser medida aqui no nosso gabinete, onde temos o “barómetro de crescimento”, gerido de forma muito criteriosa e justa pelo nosso colega Zé Pinto, em que todos os miúdos que nos visitam depositam confiança do tipo “ele é que sabe”, e nem as senhoras que cuidam da limpeza do gabinete se atrevem a limpar os tracinhos feitos a lápis numa das paredes da nossa sala de trabalho e que estão identificados com os nomes dos nossos amiguitos – as sementinhas do futuro.

    É uma honra conhecer tanta gente com tanto para dar de si, foi uma honra conhecer também um professor que se chamou Eduardo e aqui penso que sempre o vou ouvir dizer: «Bom dia D.ª Glória, como vai a sua escola».

    Caro amigo do “e-mail”, eu só posso escrever aquilo que os meus olhos enxergam e partilhar aquilo em que acredito e eu acredito sempre que viver é o risco que vale a pena, e tu que me conheces há mais de trinta anos, sabes que não é por tudo o que deixei para trás, mas sim por tudo o que tenho pela frente para conquistar, e isto nem que seja um simples sorriso que por vezes nos enche a alma e nos devolve a fé, a paixão e o entusiasmo que nos dão a força para continuar o que quer que seja e enfrentar quem quer que seja, ainda mais que agora e graças a muitos e que felizmente são incontáveis, não encontramos escrito no quadradinho que está colocado num cantinho do jornal aquilo que podemos ler na cópia do Arauto, que guardamos religiosamente:

    “Este número de “O Arauto” tem doze páginas e foi visado pela COMISSÃO DE CENSURA”.

    Por: Glória Leitão

     

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