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    Arquivo: Edição de 15-06-2012

    SECÇÃO: Crónicas


    "Mamie"

    Foto ARQUIVO GL
    Foto ARQUIVO GL
    Na manhã de quinta-feira, a medo, abri o e-mail que recebi da minha irmã e tinha identificado como assunto: aviso de falecimento – a Mamie tinha morrido.

    Claro que esta senhora de quem a doença de Alzheimer se apoderou tinha um nome: Jeannine, só que, desde que a conhecemos, que sempre a tratamos e sempre a ouvimos tratar por “Mamie”, um nome carinhoso para uma pessoa carinhosa que precisou de partir para a “Terra do Nunca”, aquela onde ninguém mais sofre, onde todos são iguais e onde todos são felizes para sempre.

    Recordar a forma como a conhecemos é ir a 1989 e lembrarmo-nos de uma família francesa que vinha de férias a Portugal, país que iam conhecer pela primeira vez e do seu ar surpreendido quando lhes foi passada para a mão a chave de uma casa que lhes foi cedida para passar férias. Ainda bem que foi este gesto que lhes marcou o primeiro contacto que tiveram com portugueses e lhes causou a primeira impressão, aquela que normalmente conta e que ajudou a passar a ideia do tipo de povo que somos: francos, generosos e acolhedores.

    Esta visita tornou-se num marco importante porque, nestas férias, também um sentimento forte havia de tocar o coração de dois jovens de países diferentes e de culturas diferentes e a que normalmente se chama amor, o tal sentimento de dialeto universal que levou ao seu casamento cruzando a vida de duas famílias que passaram a ser amigas.

    Ao convivermos com a “Mamie”, nas vezes que ela se deslocou a Portugal, aprendemos a conhecer uma senhora que tinha tido uma infância difícil, porque era filha de um mineiro que faleceu muito cedo e as dificuldades de uma mãe que fica viúva com filhos pequenos para criar é dura em qualquer parte do mundo e, neste caso, não houve exceção à regra, daí que a sua adolescência não foi fácil.

    Depois casou e constituiu a sua própria família e aqui o grau de dificuldade não foi menor, tendo em conta que para um casal humilde que trabalha e quer dar o conforto a três filhos tem um grau de esforço muito elevado. Daí que também a “Mamie” teve que arranjar dois empregos e, se um era num talho, o outro era mesmo a sua paixão: a cozinha elaborada que havia de a tornar numa profissional de cozinha excelente e isto aplicava-se à culinária diferente, de países também diferentes que ela curiosa aprendia e punha em prática fazendo de tudo uma arte requintada na degustação de iguarias.

    Lembro-me que nesta primeira visita ninguém na família conhecia Portugal, que muitas vezes associavam a um pequeno país vizinho de Espanha e pensavam seria muito parecido, muito igual e não justificava o esforço dos quilómetros que necessitariam de fazer para nos conhecerem como povo, e que no caso deles eram mais de 2 000 Kms.

    Felizmente que se enganaram, conforme nos disseram posteriormente, e ainda bem, porque também eles se apaixonaram pelo nosso pequeno país e no caso da “Mamie” e do seu amor pela cozinha, esta descoberta foi rica também em aprendizagem sobre uma forma de cozinhar muito nossa e em que tínhamos que lhe explicar o tipo de confeção de cada prato, e que ela fazia questão de conhecer em todas as refeições que fazia no nosso país – cozinha tipicamente portuguesa.

    “Mamie” não será um termo que se possa “traduzir à letra” porque tem uma abrangência especifica – uma pessoa querida, especial, uma pessoa que tem uma “linha de comando” que transmite segurança, uma pessoa que está atenta e acima de tudo uma pessoa que ama de forma especial, porque põe o bem estar da família acima de tudo e isso pode ser confundido também com frieza, objetividade ou amor recolhido.

    É também uma pessoa que sorri, de alegria e de tristeza, e que acolhe as pessoas como sua família, que ama os filhos dos outros como seus e partilha sentimentos e angústias e conquistas e derrotas. Que apoia de forma incondicional e serve de almofada na dificuldade ou necessidade de retemperar forças para voltar a partir.

    Na grande escola que é a vida percebi que o mundo sempre esteve e sempre estará repleto de “Mamie’s”, as pessoas que não substituem as mães, mas que servem como reforço, quer seja na retaguarda quer seja na vanguarda, e isto aplica-se por exemplo quando temos uma filha que, no seu primeiro emprego, nos diz que tem uma colega de trabalho mais velha e que a apoia e ajuda na sua adaptação ao trabalho, que a aconselha quanto ao futuro, que a orienta e a ensina.

    Também é a vida que nos vai compensando quando nos cruzou no passado, nos cruza no presente e nos cruzará no futuro com muitas “Mamie’s”, quer sejam sogras, madrastas, amigas ou até pessoas mais jovens que têm aquele “condão” de nos fazerem sentir protegidos, numa palavra, num gesto ou num simples afago. São as pessoas que riem com a nossa vitória e choram a nossa derrota ficando sempre ali, no cantinho do coração que lhes está destinado.

    Foi uma honra conhecer esta grande senhora, que se assemelha a muitas outras grandes senhoras e isso nem sequer passa pela estatura física, porque é intrínseco e faz parte do carácter o que torna esta característica impossível de ser dissimulada ou fingida, porque perdura com a pessoa, igual e inalterável, no tempo que lhe estiver destinado para viver.

    Eu sei que vai sorrir quando lhe disser que nunca mais esqueço um dia em que me convidou para jantar na sua linda e florida casinha e me disse: “– Glória, tenho uma surpresa para ti!”. Fiquei curiosa do que seria até ao momento em que me serviu como primeiro prato uma das suas especialidades: “escargots” e eu fiquei estarrecida e quase chorava, mas olhava para a sua cara de entusiasmo e consegui comer os 10 que tinha no prato e disfarcei muito bem a vontade de chorar.

    Agora “Mamie”, quem tem sorte são mesmo os caracóis, e os meus pais não imaginam que lá no quintal de casa eu não mato nenhum e até os ajudo a atravessar os passeios para que não os matem e aqui penso que não será somente pela admiração que tenho pelo facto de os considerar autónomos porque trazem todos os seus haveres na sua pequena casca que os abriga, mas também pela certeza que tenho de que não me aparecem mais num prato de refeição que me seja servido.

    Eu sei que me compreende da mesma forma que eu compreendia quando no seu país lhe fizemos uns deliciosos bolinhos de um bacalhau que transportamos do nosso país, mas nos disse que a nossa comida sabia bem comida aqui, em Portugal e isso aplicava-se não só aos bolinhos de bacalhau, como também a uns carapaus, “chicharrinhos”, feijoada ou cozido à portuguesa, e isto porque as refeições eram acompanhadas pelo carinho, pela alegria e pelo sentido de família dos portugueses – um condimento essencial e imprescindível para completar qualquer tipo de refeição.

    Fiquei tranquila porque sei que na despedida que precisou de fazer da caminhada que terminou nesta vida, teve ao seu lado o “Papi”, o seu companheiro de sempre, aquele que a acompanhou na sua caminhada ao longo de mais de 50 anos e também porque universalmente existe o culto da “igualdade de pessoas e género”, no mínimo em sentimento, hão-de entender que nesta singela homenagem estão também implícitos todos os que tenham capacidade de amar e dar de si, quer sejam homens ou mulheres.

    Um dia citei Saramago que, a uma dada altura dizia que os “filhos são um empréstimo”, logo, pais de ontem, pais de hoje, pais de amanhã, é isso que todos seremos: um empréstimo de alguém que se há-se cruzar para sempre na nossa vida.

    Por: Glória Leitão

     

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