Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 30-04-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 15-05-2012

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    O homem do campo e a sua forma de estar

    Filosofia própria ou forma hábil de escapar a uma situação embaraçosa, sempre que alguém puxava o tema da política, o homem do campo respondia invariavelmente:

    - A minha política é o meu trabalho.

    Era-o de facto. Houvesse o que houvesse, durante o chamado Estado Novo ou nos anos que se seguiram, o discurso do matuto não sofria, como não sofreu, inflexão, e nunca a sua vida se alterou fosse qual fosse o presidente, primeiro-ministro ou partido dominante, cujos nomes fazia questão de ignorar com um desdenhoso encolher de ombros:

    - Se eu não fizer por as cousas ninguém mas trai a casa. (1)

    Outra asserção indesmentível mas que não colhia, está bom de ver, porque os governantes não dão nada, diretamente, a ninguém nem seria suposto fazerem-no. Mas era exatamente o que sentiam, habituados ao isolamento de séculos. Cultivavam a terra utilizando os instrumentos de trabalho que ali mesmo eram feitos: arados, grades, espalhadouras, engaços, carros de bois e até a aguilhada com que picavam os animais para andarem mais ligeiros. Alguns, que não podiam fabricar e de que tinham necessidade, adquiriam-nos a contrabandistas que os traziam das localidades espanholas mais próximas, raramente iam comprá-los à cidade, à vila ou às aldeias onde se realizavam feiras tradicionais. O mesmo acontecia em se tratando de utensílios domésticos ou objetos pessoais que incorporavam metal. A fadiga do uso exigia a presença de ambulantes que, de quando em quando, surgiam na aldeia: latoeiros, peneireiros, sombreireiros, amoladores, que reparavam os objetos e cobravam pouco, porque conheciam as dificuldades dos camponeses, muitas vezes aceitavam pagamento em géneros que transportavam nas suas carroças. Praticavam uma agricultura de subsistência, que dependia quase inteiramente das condições atmosféricas, e colocavam-na sob a égide de Deus e dos santos. Se havia secas prolongadas, organizava-se uma procissão a implorar a graça da chuva; se uma trovoada punha em risco a colheita do cereal, corria-se à igreja, descia-se do altar a imagem de Santa Bárbara, ou de qualquer outro intercessor junto do Altíssimo, e trazia-se para as portas do templo abertas de par em par, recitando-se orações apropriadas ou espontâneas; se uma praga invadia os campos havia rogos, penitências e orações coletivas; se o fogo se declarava nas casas ou “por lá” (2) tocavam o sino a rebate, cada um lançava mão do recipiente disponível que tivesse utilidade e corria para onde o desastre tivesse ocorrido tão rápido quanto as pernas e as condições do tempo o permitissem. Confiavam em si próprios e entreajudavam-se até onde humanamente era possível, depois entregavam na mão de Deus a resolução dos seus problemas.

    Este tipo de atividade agrícola requeria o contributo de todos, homens e mulheres e até crianças desde que pudessem desempenhar alguma função por mais simples que fosse: ir com a cria (3), caminhar à frente das vacas, que puxavam o arado ou a charrua, para que não se desviassem da linha de lavra, trazer o pipo (4) do vinho para matar a sede dos adultos e colocá-lo em local fresco, junto de nascentes ou pequenos cursos de água. As mulheres trabalhavam em casa e nas terras consoante as necessidades da família ou de vizinhos com frequência seguiam com o marido e os filhos para o campo, voltavam a casa a meio da manhã para arranjar o jantar (5) e levavam-no onde eles estivessem, retomavam o trabalho do campo e regressavam a casa para tratar da ceia.

    foto
    As mais graves condicionantes a este modo de vida aconteciam quando uma doença retirava capacidade de trabalho a qualquer membro da família. A seleção natural tinha, neste meio e nestas condições, plena realização. A mortalidade infantil era muito elevada, raríssimos os casos de famílias em que não morressem um ou mais filhos antes dos cinco anos, os sobreviventes resistiam a quase todos os focos de infeção provocados por ausência de normas higiénicas e de cuidados médicos. Só em situações extremas e relutantemente, as pessoas condescendiam em visitar um clínico, faziam gala da sua robustez excluindo auxílio do doutor e do seu receituário, que a não existência de estrada e meios de transporte acentuavam. Convém lembrar que, em tempos menos recentes, passavam pelas aldeias do interior, indivíduos disponíveis a prestar determinados serviços de saúde, misto de charlatão, bruxo e naturista, sem qualificações de qualquer espécie e sem o estatuto cerimonioso de “gente da cidade”. Havia também mulheres do povo hábeis em diagnosticar maleitas, reconhecer ervas e as respetivas propriedades, recitar orações ou meras lengalengas enquanto executavam os trabalhos. Cortavam o cocho dos sapos (6), preparavam mezinhas aos afetados pelas lombrigas, favoreciam ou afastavam ligações amorosas com recurso a manobras que tinham tanto de esperteza como de ingenuidade e assistiam no parto as vizinhas segundo a antiga sabedoria das antepassadas.

    Dizer que o trabalho do campo era penoso e desgastante seria desnecessário embora, hoje, poucos tenham a exata noção do que tal significa. E, quando ouvimos as queixas dos que sofrem a inclemência do tempo e a falta de apoios aos agricultores, esboçamos um sorriso triste e irónico ao lembrarmo-nos do que sofreram gerações sem conta dos que os precederam e não tiveram outro remédio senão sofrer, calar e confiar na intercessão divina.

    (1) «Se eu não fizer “por as cousas”, ninguém mas “trai” a casa» – Se eu não fizer pelas coisas ninguém mas traz a casa.

    (2) “Por lá” – pelo campo num sentido indefinido, fora da aldeia.

    (3) Ir com a cria – conduzir os animais de trabalho para o lameiro e tomar conta deles.

    (4) Pipo – recipiente pequeno, em forma de pipa, para transportar e dele beber o vinho.

    (5) Jantar – refeição servida por volta do meio dia, correspondente ao nosso almoço. Antes de sair para o trabalho, tomava-se a 1ª refeição do dia, o “desenjum” ou mata bicho; cerca do meio dia era o jantar, no regresso a casa era a ceia. Nos dias grandes de verão e quando havia trabalhadores além dos familiares, servia-se uma merenda a meio da manhã e outra a meio da tarde, em geral composta por centeio, presunto, salpicão ou queijo e acompanhada com vinho.

    (6) Cocho do sapo – erupção provocada na pele por um líquido ejetado pelo sapo, acompanhada de comichão e outros incómodos.

    Por: Nuno Afonso

     

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].