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    Arquivo: Edição de 22-02-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    O Pedro e a Ana

    Recomeçar a estudar 35 anos depois não é mesmo tarefa fácil, ainda mais quando se chega a uma faculdade. Eu quase sempre acho que o povo tem razão e o ditado “burro velho não aprende línguas” terá o seu quê de certo mas eu lá aprendi tanto!, sobre passado e sobre presente, tendo em conta que o futuro é e será sempre imprevisível.

    Agora quando me dizem que estou mais refilona, penso cá para mim que Peter Drucker devia ter razão quando escreveu:

    «A Educação faz com que as pessoas sejam fáceis de guiar, mas difíceis de arrastar, fáceis de governar, mas impossíveis de escravizar».

    Naquela escola de gente grande, a disciplina que mais dificuldade tive em interiorizar foi Psicologia e, de uma forma mais acentuada no primeiro semestre do ano letivo, porque ia com o objetivo de recolher ao máximo tudo o que poderia reter como aprendizagem. Precisava de ganhar tempo e aprender o mais possível, de tudo o que me fosse possível.

    A professora desta disciplina era uma pessoa fantástica na arte de ensinar e tinha o hábito de nos perguntar sempre que nos explicava uma matéria – «faz-vos sentido?». Certo é que de tanto me fazer sentido tudo o que ouvia, em certas aulas eu saía com vontade de chorar por tudo o que sentia, por tudo o que representava na minha vida, na de outros e na de tantos outros e aqui lamentei muito que tantas pessoas que passaram pelas faculdades não tivessem retido muito daquilo que lá é ensinado.

    Um exemplo foi que, ao terem-nos ensinado tanta alternativa de gestão, não compreendi porque é que com o mesmo tipo de investimento muitas pessoas que na linha de comando estão em lugares de destaque e com responsabilidades na orientação de pessoas, prefiram adotar um estilo de “mandar”, que leva toda a sua equipa ao “burnout” – a exaustão emocional, a despersonalização e a ineficácia profissional que por si só tem efeitos contagiosos e nefastos a toda a organização.

    Mas também foi lá, na mesma escola de gente grande, que aprendi que existe uma alternativa a este “estilo” que é adotar-se uma outra atitude, que também é de gestão: a liderança que promove o “engagement” da sua equipa – envolvimento, energia, autoeficácia profissional, vigor, dedicação e que também tem efeitos contagiosos a toda a organização, só que ao contrário do outro cenário, aqui falamos de efeitos e resultados que são positivos para toda a equipa e duradouros na vida das organizações.

    Retomando o que escrevia sobre Psicologia, refiro que no primeiro semestre desta disciplina e na primeira avaliação, a nota foi um 5, e eu tive mesmo que ir a exame e mesmo o 10 que me permitiu passar e concluir o 1º semestre foi “arrancado” de dentro de mim, a ferros.

    Preocupei-me porque não me passava o “trauma” da Psicologia, que já vinha de “outros carnavais”, e eu sabia que no 2º semestre iria voltar a ter esta disciplina com uma outra professora, também exigente e eu partia já com uma ideia derrotada de que não iria conseguir fazê-la.

    Num apontamento publicado anteriormente, eu dizia que o meu computador era a minha companhia fora de horas, o meu melhor amigo, porque estava ali, em horas desajustadas, para me permitir teclar sobre os meus receios e preocupações. Depois, a este amigo, juntaram-se dois periquitos que me ofereceram para que não me sentisse só quando chegasse a casa. Havia sempre o único senão que tinham: nem o computador nem os periquitos falavam e eu sentia falta de ouvir e falar.

    Foto ARQUIVO GL
    Foto ARQUIVO GL
    A forma que arranjei para compensar essa solidão foi o “café do Pedro”, que era duas casas acima da minha. O Pedro, sabendo que o meu orçamento não me permitia consumir, não se importava com isso e como tinha wireless deixava-me levar para lá o computador e até já tinham uma mesa destinada a mim e eu passava ali as tardes de domingo, escrevendo as minhas reflexões ou estudando.

    Gostava do trabalho que conseguia produzir pois era mais fácil para mim concentrar-me e sentir-me acompanhada, mesmo não falando, porque ali também havia a tal regra, que é regra da vida – respeitar o silêncio, o nosso e o dos outros, e com o tempo aprendemos a ler nas entrelinhas e todos nós, que nos tornávamos clientes habituais daquele espaço tornamo-nos “craques” a ler fisionomias, a respeitar clubismos, a respeitar temperamentos diferentes.

    Sentíamos que todos tínhamos o nosso espaço no “café do Pedro”, a quem se juntava a Ana nas tardes de domingo, e eu adorava vê-los no vaivém deles, que era acompanhado pela ternura e carinho próprios de duas pessoas que se amam e começavam a construir um caminho - juntos e cúmplices.

    Também à noite, e quando chegava da faculdade já bastante tarde e em dias em que precisava de “relaxar”, retemperar forças e seguir o meu caminho, saía na paragem de autocarro que está localizada junto ao café e mesmo já com as cortinas corridas pelo tardio da hora eu via luz, espreitava e lá estava o grupo animado que me perguntava, quando me sentiam a abrir a porta: «Então D.ª Glória, as notas?», e se dava, eu ficava lá um bocadinho a dar duas de treta, a rir-me quando eles não imaginavam que muitas vezes eu entrava era com vontade de chorar, que ia passando conforme os ia ouvindo a falar uns com os outros.

    Já no segundo semestre do curso e voltando à Psicologia e aos traumas que me acompanharam, começam as avaliações e, por hábito, a professora pede-nos para antecipar a nota que pensamos ter e eu, a medo, digo «8»? A professora pediu ao meu colega de carteira que me “mochasse” e eu, incrédula, fui subindo as previsões até à confirmação da nota – 14. Fantástico, pela nota, pela alegria que senti nos meus colegas de turma e, acima de tudo, pelo que isso representava na minha vida: um trauma superado.

    Nessa noite, a caminho de casa, vinha feliz e pensava que aquela hora não tinha com quem festejar esta minha vitória. Saio do autocarro e vi luz no “café do Pedro”. Abri a porta a medo e lá estava o grupo alegre e bem disposto, e quando me perguntam a nota e eu lhes eu digo «14», recebi uma ovação – eu acho que eles perceberam tudo o que isso significava para mim. Sei que avaliavam o meu esforço e valorizavam a minha coragem.

    Sentei-me um bocadinho a ouvi-los a conversar e, de repente, na mesa aparece um lanche improvisado para festejarmos a minha nota, mas penso que também para festejarmos uma amizade que se foi instalando entre todos – gestos que a memória não apaga e o coração nunca esquece.

    Fechou o “café do Pedro”, eu não pude voltar à faculdade, e os meus periquitos voaram, e quando me disseram que poderiam morrer porque não sabiam procurar comida, eu respondi que nem que fosse por um tempo muito curto das suas vidas eles iriam saborear a liberdade, porque se a frase que me escreveram, «ninguém escapa ao sonho de voar» me mudou a vida, como podia chegar a casa e encontrar duas criaturas tão lindas fechadas numa gaiola?

    A vida dispersou-nos a todos e praticamente já não vejo ninguém, mas antes do Natal o Pedro ligou-me dizendo-me que queria falar comigo. Fiquei preocupada – seria algo que estava mal com ele e com a Ana? E gostando deles como se gosta de dois filhos, ainda por cima com pouco mais de vinte anos, o meu coração não sossegou enquanto não percebi o que estava a acontecer.

    Afinal, o Pedro e a Ana, com os rostos sorridentes e com o ar terno e meigo de dois seres que continuam a amar-se, queriam somente oferecer-me dois botões de rosa, brancos, da cor da paz!

    Por: Glória Leitão

     

     

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