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    Arquivo: Edição de 22-02-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    Crenças ou crendices – castigo

    Pode o bom senso admitir que alguém seja responsabilizado pela morte de outra pessoa, a quilómetros de distância entre si e sem outra arma que não fosse a desafeição que reciprocamente mantinham?

    O mesmo bom senso pode admitir que o ódio que alguém manifesta por um vizinho, na hora em que o vê morrer, venha ter consequências fatais para aquele, um quarto de século mais tarde, no mesmo local em que presenciou o infausto acontecimento e em circunstâncias muito idênticas?

    E também que…

    Ele há coisas! – diz o povo com toda a razão. E tornou-se moda afirmar que não há coincidências. Em certo sentido, talvez possamos aceitar tal posição, considerando que, por mais semelhanças que encontremos entre dois factos ou situações, eles nunca serão rigorosamente iguais; olhando de outro prisma, alguns acontecimentos deixam-nos perplexos, incrédulos, temerosos, porque parece ter havido entre eles uma relação de causa e consequência ou de interferência transcendental.

    Comecemos pelo caso do tio Sincelho, trabalhador de mão cheia, bom reprodutor e um tanto imprudente nos seus juízos. Enquanto viveu a tia Petronilha, sua mãe, que dispunha do usufruto de terras e lameiros à morte do marido do qual não teve filhos, foi ele que assumiu o seu manejamento, garantindo assim melhor sustento ao seu núcleo familiar, ele, a mulher e uma catrefada de filhas e filhos à maneira antiga que, uma vez criados, tomaram seu rumo, uns para a emigração, outros na própria aldeia. Os primeiros, como a grande maioria dos estrangeirados, vinham à terra passar as vacanças, no mês de Agosto, e impunham aos residentes um cequidiz ainda menos cuidado do que o original, uns tiques de gente urbanizada e finória adquiridos nos contactos com autóctones um tanto excluídos, emigrantes portugueses e de várias outras nacionalidades mas, por baixo desse verniz engorgulhotado, conservavam, muitas vezes, a fraqueza de espírito, a ausência de princípios de sã convivência, malquerenças transmitidas pelos progenitores, em especial o elemento feminino, diferenças antigas com outras mulheres da aldeia, palha seca prestes a originar incêndio à menor faúlha que as tocasse.

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    As filhas que por ali se mantiveram não esqueceram a tendência genética para a quesília, língua bem afiada e disponibilidade para a zaragata. A morte do tio Sincelho, no alto da serra, devida a um disparo da própria caçadeira considerado acidental pelas autoridades competentes, não teria ido mais além na demanda de responsabilidades se não houvesse contas velhas para acertar com a tia Mércia, vizinha e da mesma geração do falecido e da Cândida sua viúva. Não se sabe ao certo onde terão começado os desentendimentos entre as duas mulheres, conhecido era o hábito de discutirem a cada passo por motivos de “lana caprina”, fazendo barrela à roupa suja de incontáveis dias em que ferviam insultos e palavrões do mais sórdido menu conhecido. Ninguém testemunhou a cena porque ele fora com a mulher para “à Quinta” e, quando lhe pareceram horas, mandou-a para casa que ele ia “dar uns tiros”, matar um coelho para o jantar. Chamou o cão, pôs a caçadeira ao ombro e seguiu o seu instinto pouco afinado de caçador ocasional. A mulher cumpriu a ordem recebida e recolheu-se a descascar as batatas, a lavar e cortar as couves, a pôr a panela no fogão que só acenderia mais tarde. Entretanto, arrumou a casa e, como se aproximava a noite e o homem não chegava, deu conta da sua inquietação às filhas já casadas que, de pronto, a acompanharam à sua procura. Com o instinto a guiá-las e depois de algumas buscas, foram encontrá-lo morto, trespassado por uma bala que, mais tarde, os peritos asseguraram ter partido da própria espingarda, considerando também que o tio Sincelho, já com mais de oitenta anos, devia ter escorregado ou tropeçado e, ao tentar apoiar-se na arma, esta disparou atingindo-o no abdómen. Todavia, o parecer dos entendidos não evitou que as dores do luto se misturassem às da inimizade com a tia Mércia e, dias após o funeral, duas filhas do defunto saíram-lhe ao caminho e agrediram-na, assacando-lhe a responsabilidade pela morte do pai. Elas sabiam muito bem que a sua vítima, provavelmente, nunca tinha pegado numa arma, ninguém a vira para aqueles lados onde o homem fora encontrado sem vida, os seus trabalhos fazia-os ali bem perto de casa e tinha o marido muito doente a requerer toda a sua atenção, razões de sobra para ficar livre de suspeitas. Tê-la-ão elas acusado de assassínio moral, não por estas palavras, talvez algo como coisas de bruxaria, correspondendo a “trabalho” de macumba noutras paragens, ou similares. O caso foi parar a tribunal e promete ter novos capítulos em tempos mais ou menos próximos. Ninguém diria que, num país e numa região em que o catolicismo sempre impregnou a vida individual e coletiva, fosse tão frequente o recurso a práticas e justificações baseadas num substrato pagão ou animista, frequentemente mais crível do que os ensinamentos religiosos contrários a superstições e quejandas.

    Vinha caindo a tarde de um dia frio de novembro e os moradores da aldeia davam por terminado o “concelho”, assim chamado o dia de trabalho em prol da comunidade em que cada família contribuía com, pelo menos um homem ou outro fator de trabalho. Alguns já regressavam dos lados da serra com a ferramenta ao ombro, conversando, divertidos, mau grado o cansaço. O senhor Morais conduzia o seu trator, caminho abaixo, com um atrelado carregado de terra onde dois ou três jovens tinham aproveitado boleia para voltar a casa. A pressão do atrelado sobre a máquina agrícola, potenciada pela inclinação da vereda, era muito forte e o travão mostrou-se incapaz de suster tão grande peso. Ao descrever uma curva à direita, o condutor não conseguiu governar a máquina mas teve ainda lucidez para gritar aos ocupantes do atrelado que saltassem, evitando males maiores. Ele é que não pôde escapar à tragédia: foi projetado e, na queda, encontrou a morte, enquanto o trator tombava para a ribeira que corria ao fundo. Alguns homens que se encontravam nas proximidades correram para o local da queda no intento de prestar auxílio às presumíveis vítimas. Infelizmente, não puderam ajudar o condutor mas transportaram o corpo para casa e disponibilizaram-se para o que fosse preciso. Na vertente oposta, ao alto do chamado “caminho novo”, assomava o senhor José Lopes que presenciou o acidente prosseguindo, tranquilamente, em direção à aldeia. Ainda teve ocasião de expressar o seu contentamento por ter presenciado “ a morte do seu maior inimigo”, como ele se referiu ao falecido com quem tivera desentendimentos tempos atrás. Um quarto de século depois, tragédia muito semelhante aconteceu. O homem que mostrara tanta crueza de alma perante a infelicidade alheia, sofreu morte idêntica: o trator que dirigia e que tantas vezes por ali transitara precipitou-se, ladeira abaixo, provocando a morte do seu condutor. O acidente ocorreu no lugar donde presenciara a morte do senhor Morais. Coincidência que não deixou indiferentes os moradores da aldeia. «Ele há cada ca(t)cho de cousa!», diria o meu tio João de Deus se ainda vivesse. Muitos registaram o que lhes pareceu castigo divino, que exclui sentimentos de ódio ao nosso próximo. O cerne da doutrina cristã é o amor entre os homens, a reconciliação entre os que, ocasionalmente, podem ter ressentimentos.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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