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    Arquivo: Edição de 15-02-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    O obrigado que me faltava dizer!

    Escrever é uma forma de me ouvir, de me escutar e de me corrigir. Tem sido fundamental para a minha reconstrução e não ter problemas em partilhar aquilo que entendo poder fazer é porque acredito naquilo que um dia já escrevi – nós não somos ilhas isoladas só crescemos e evoluímos aprendendo uns com os outros o que nos leva a adotar ou rejeitar o que se adapta, ou não, à nossa maneira de ser.

    Para mim, o exercício mais difícil para o ser humano é colocar-se no papel de espetador da sua própria vida, “descolar-se” de si mesmo e, da mesma forma que avaliamos os outros fazê-lo a nós mesmos no papel de críticos, de juízes, de conselheiros e, finalmente, de amigos.

    Como já escrevi, é um exercício muito difícil porque é irmos ao fundo de todo o nosso passado como se fôssemos ao fundo de um poço e se perdermos demasiado tempo na avaliação do que foi a nossa vida podemos não ter força para subir e “afogamo-nos” dentro de nós mesmos. Contudo, se conseguirmos emergir e definirmos um plano de ações corretivo e de intervenção, nós sobrevivemos e seguimos em frente, melhores seres humanos com quem passamos a conviver – o nosso EU.

    Pelo que tenho escrito é fácil perceber-se que foi isto que a vida e os seus reveses me obrigaram a fazer, porque era a minha única saída para sobreviver a mim mesma e ao contrário do que muita gente “outsider” pensava, e se calhar pensa, é que tudo isto teria sido consequência de um divórcio e o inerente desmoronamento de uma família. Enganam-se redondamente porque isso só foi ter enfrentado “Virginia Wolf” e não lhe ter sucumbido. Havia muito mais para além disso, pessoas, muitas pessoas e um silêncio, um grande e definitivo silêncio.

    Assim, situo-me no final de 2009 quando entro no Centro Social de Ermesinde.

    E é a partir daqui que preciso fazer “post-it’s” do que os meus olhos viram e continuam a ver, colocando-me como espetadora de uma vida que foi e é a minha.

    Nessa altura olho para mim, uma mulher que pesava 110 Kgs, deprimida, assustada, vazia e sem sonhos, ainda mais com a terrível sensação de que tinha desaprendido e sem contacto com um computador num espaço alargado de tempo, que pensava já não saber escrever, que era o que adorava fazer, dava-me a sensação de estar a viver num vazio, ausente de mim.

    Aqui a única solução que encontrava para sentir um teclado era usar o telemóvel, mandando mensagens para mim mesma, respondendo a mim mesma numa autoavaliação, e isto durante três anos, tantos quanto durou a minha introspeção, e autoavaliação que precisei de fazer.

    No Centro Social de Ermesinde as funções que iria ocupar eram as de ajudante de refeitório e rapidamente se percebeu que seria difícil ter a agilidade necessária para o lugar para que tinha sido contratada, porque naquela cozinha, pelo nível de exigência, é impossível ser-se lenta, o ritmo é e tem que ser de alto rendimento. Dali são servidas as refeições para os utentes do Lar de S. Lourenço, para levar ao domicílio de pessoas idosas e acamadas que o solicitam, e ainda a todos os colaboradores desta instituição.

    Na altura percebi que também havia outro refeitório que servia os meninos que frequentam o berçário, creche e ATL do Centro Social e dá também suporte ao programa de Festas de Aniversário que toda e qualquer pessoa pode contratar, organizado e animado por colaboradores deste Centro que encontraram aqui uma forma de, com o seu esforço, angariarem fundos que revertem a favor das suas crianças.

    NO CENTRO DE ANIMAÇÃO

    DAS SAIBREIRAS

    Fotos ARQUIVO MANUEL VALDREZ
    Fotos ARQUIVO MANUEL VALDREZ
    Fui mandada para o refeitório do Centro de Animação das Saibreiras, onde persistiu o mesmo problema de falta de agilidade, apesar de todo o meu esforço, na tentativa de ser encontrada uma solução para que me mantivesse nos quadros do Centro Social. Entretanto dá-se uma vaga de ajudante de ação direta no protocolo de Rendimento Social de Inserção e eu sou selecionada.

    O facto de integrar uma equipa de pessoas bem formadas como seres humanos, também jovens e dinâmicas, ajudou a minha adaptação ainda mais do que as tarefas que passava a desenvolver e se assemelhavam a desempenhos que tive à minha responsabilidade numa fase do meu passado profissional. Aqui somente o facto de ser mais velha, ter desabado como ser humano e andar à procura de mim própria é que me obrigou a precisar de tempo, muito mais tempo que o normal porque ainda fiquei um ano à deriva dentro de mim mesma.

    Depois lembro-me de, à data da minha admissão, me terem perguntado quais as minhas habilitações literárias e quando digo: curso complementar incompleto respondem-me: «A senhora tem o 9º Ano de escolaridade» e efetivamente era isso mesmo que contava. Aí percebi que toda a formação técnica que tinha acumulado ao longo dos meus 30 anos de trabalho em áreas como recursos humanos, produção, qualidade, melhoria contínua, etc., apesar de certificada e validada, não poderia ser considerada.

    Começo a sentir necessidade de aprender e percebo que o Centro Social de Ermesinde tem um Centro de Novas Oportunidades onde entro a medo e sou acolhida – estava criada uma Nova Oportunidade tendo em conta que este projeto é destinado a pessoas que, como no meu caso, precisam de validar competências pessoais e técnicas que foram acumulando ao longo do percurso de vida, e foi isso que encontrei quando em casa abri um saco e estavam lá todos os documentos que eu pensava já não existirem, as evidências em suporte de papel que me davam uma certeza – eu tinha tido uma vida, um saber, e isso ia ser fundamental.

    O que ajudou a mudar o meu mundo e que me fez encontrar a minha vida foi também o computador que pude comprar ao abrigo do RVCC – o meu piano – porque é isso que sinto enquanto escrevo: que componho música e os meus textos têm o som de uma vida, de muitas vidas que são contadas nas entrelinhas do que me vai saindo como escrita – começou com o meu Portefólio Reflexivo de Aprendizagem e mereceu o seguinte comentário: «Ninguém escapa ao sonho de voar, Glória».

    O que vi neste CNO (acredito que aconteça o mesmo em todos os CNO’s do País) já tive a oportunidade de expressar ao senhor primeiro-ministro deste e de outro Governo – a procura de apoio por parte de muita gente que quer validar competências ou frequentar ações formativas.

    Pessoas que precisam de ajuda para transformar o saber que têm guardado dentro de si e que vão na procura apoio para se reinventarem, adaptando-se às novas exigências de mercado de trabalho, gente que não quer parar de aprender e que precisa de voltar a construir sonhos e oportunidades ainda mais que, sendo um processo gratuito, alarga as possibilidades a todos, sem exceção, que ficam sem desculpas para não evoluírem.

    Em diversas ações de formação que frequentei encontrei técnicos de formação competentes, dinâmicos, ativos e que nos ensinaram a ser proativos e a desenvolver capacidades pessoais que por tendência desvalorizamos.

    Nesta partilha de ensinar/aprender estes profissionais de formação tornam-se valiosos na concentração que têm de um saber que será útil ouvir e respeitar em diagnósticos de um país real.

    A isto acrescento ainda que precisava decir a exame de uma disciplina difícil na faculdade, Estatística, e não podendo pagar as explicações, ali também tinha a solução, porque pelo respeito que o meu esforço lhes mereceu e merece, um formador, com vastos conhecimentos nesta área disse-me: «D.ª Glória, eu ajudo-a!».

    Depois vi a importância que tinha um GIP – Gabinete de Inserção Profissional, que é também uma das valências do Centro Social de Ermesinde, e onde podemos procurar ajuda para a integração no mercado de trabalho.

    Representado por técnicas qualificadas e na dependência direta dos IEFP tornam-se as “portas amigas” onde as pessoas se deslocam na tentativa de procura de oportunidades de trabalho, tendo em conta que estes profissionais visitam empresas no sentido de perceberem quais as necessidades reais de recrutamento, identificando potenciais candidatos que são filtrados através dos seus rastreios.

    O meu contacto com estes profissionais deu-se quando participei num grupo de formação e aprendi as técnicas de procura de emprego, o que incluiu a metodologia adequada para a elaboração de “curricula, cartas de apresentação e entrevistas, enriquecendo-me de um saber incompleto nesta área.

    O CENTRO

    DE OCUPAÇÃO JUVENIL

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    Habituados que estamos todos a apoiar as colegas de outras valências cruzo-me com a necessidade de ir dar uma mãozinha ao COJ – Centro de Ocupação Juvenil em dia em que os “miúdos” promovem uma feirinha ao ar livre em que vendem os seus pequenos tesouros e coisas que lhes são ofertadas por estabelecimentos amigos de Ermesinde que se associam à sua causa: angariar dinheiro para comprar o que lhes é útil nas suas atividades do Centro que, na sua base, funciona sem fins lucrativos.

    E vejo, porque são elas que me ensinam, as técnicas de negociação que usam sentindo-as eficazes. Explicam-me o tipo de clientes que eles identificam como certos, porque estão habituados a que lhes visitem a “banca” que está colocada no jardim e de quem se aproximam como pequenos amigos de amigos grandes que conhecem as suas dificuldades e contribuem com o que podem, comprando o que muitas vezes deixam para que volte a ser vendido, permitindo assim que eles possam fazer mais “negócio” – o fim para que se destinam é válido e pude verificar que há muitas pessoas que têm consciência disso.

    Estes miúdos nem imaginam que me inspiro muitas vezes neles para não desanimar quando não consigo atingir os objetivos no trabalho que precisei de abraçar como “part time” – venda porta a porta enquanto procuro outra alternativa.

    COJ, são meninos e jovens, alegres e dinâmicos que têm uma cumplicidade gira com as suas cuidadoras, que estão atentas às suas traquinices e também às suas estratégias de distração para se desviarem da concentração que precisam de ter para fazer os seus TPC’s escolares.

    O que os meus olhos não podem deixar de ver também é a solidariedade do Refeitório Comunitário que fica ao lado do nosso gabinete de trabalho e simboliza a mão invisível da amizade, onde se partilha o que se recebe e aqui é impossível ficar indiferente.

    E eu vejo uma equipa de gente que se dedica a uma causa que não sendo a delas, é de todos nós, porque a fronteira que nos separa de causas sociais é muito ténue e o que me deixa mais tranquila, num cenário que não deixa de ser preocupante, é existir esta alternativa – gente amiga, uma palavra amiga, uma refeição quente e quando é possível um saco amigo onde é colocado, como partilha, aquilo que é confiado para distribuição a esta Associação.

    Aqui o mais importante para a dignidade, que é um direito de todos, é vermos somente aquilo que tem que ser visto e calar aquilo que tem que ser calado. A maior atitude de respeito que se deve ter pelo “outro”, que um dia poderemos ser nós.

    Também vemos todos os dias os meninos no Centro de Animação das Saibreiras, pequeninos e mais grandinhos e que nos alegram com as suas brincadeiras em sons que nos chegam através das janelas do gabinete ou quando vamos almoçar e eles estão distribuídos pelas suas mesas, finalizando a sua refeição.

    É como ouvirmos o “chilrear” das avezinhas que todos conhecemos porque quando vamos tratar de aspetos administrativos eles lá andam, alegres, irrequietos, irrompendo pelo gabinete da Direção do Centro onde eles confiam às pessoas que lá trabalham a guarda das suas preciosidades – bolas, cromos, tazzos, etc..

    Os mais pequenos habituamo-los a ver seguindo as suas “mães-galinha”, as suas cuidadoras que zelam pela sua segurança e bem estar.

    Em dias de sol vemos este meninos que pulam e saltam alegremente no parque infantil exterior, extravasando toda a sua energia que os fará ir mais calmos e tranquilos para as suas famílias, para as suas casas.

    PRTOCOLO DO RENDIMENTO

    SOCIAL DE INSERÇÃO

    No protocolo de RSI – Rendimento Social de Inserção, onde trabalho, aqui e de novo a regra básica a ser aplicada é a da vida: o silêncio, que é de ouro.

    Aprendi a ter cada vez mais respeito pela minha vida e pela dos outros, aprendi a não desvalorizar esta medida, aprendi que é muito fácil cair-se na situação de ter que se recorrer a esta medida, aprendi a não julgar, aprendi que isto é o rosto do nosso e de qualquer outro país.

    Nesta equipa, constituída por técnicas validadas e competentes para o cumprimento das regras definidas pela Segurança Social vejo-me a integrar um grupo constituído por quatro ajudantes de ação direta e tive sorte por serem profissionais pautados pela disciplina, pelo rigor e pelo bom senso.

    Num plano criterioso de visitas que estamos a efetuar às 360 famílias abrangidas por este protocolo são-nos confiadas tarefas de apoio à integração das famílias, auxilio na planificação de atos essenciais à vida, dinamização de ações de formação, e promoção do incentivo para que as pessoas desenvolvam capacidades por forma a que possam libertar-se desta medida social.

    Vejo o que tem que ser visto na necessidade que há de recurso ao trabalho que é fornecido através da área de Psicologia, assegurado pelas nossas psicólogas afetas ao Centro Comunitário e uma delas, de uma forma mais especifica precisa de desdobrar-se em consultas de apoio ao Centro Social de Ermesinde, a todas as outras valências e também à CPCJ, com quem trabalhamos em parceria.

    Tudo muito bem sintonizado e articulado entre todos numa área que envolve essencialmente o bem estar e a proteção de crianças.

    COMO CONCLUSÃO

    Agora, o que eu vejo em mim é uma mulher que pesa muito menos que 110 Kgs, que precisou ser “cobaia” de um processo que a fez juntar ao seu vasto curriculum profissional mais uma competência - como é que uma pessoa se levanta do chão, com dignidade.

    Aprendi que o caminho se faz caminhando, ainda mais que ao construir um novo percurso, uma nova vida, somos como bebés que aprendem a andar – primeiro caminhamos a medo, tropeçamos e levantamo-nos até nos sentirmos mais seguros para palmilharmos o caminho que escolhemos seguir.

    Tive e tenho a ajuda de todos e isto inclui a minha família, mas é impossível não referir os meus “três mosqueteiros”, os meus colegas de gabinete – a Géni, o Zé, a Rosa, que já lá não está e foi substituída pela Mariazinha – pessoas que desde há três anos estão atentas, críticas, amigas e conselheiras e a quem eu “viro a vida ao contrário” com as minhas tropelias – disseram-me um dia que eu tive sorte por ter conseguido aquele lugar mas que eles também tiveram sorte em ter sido eu a pessoa escolhida.

    O ambiente de trabalho, bom ou mau, é seguramente feito por nós e é de nós que parte a iniciativa de aprendermos a conviver com as diferenças e resolvendo, em equipa, divergências que podem ser saudáveis e enriquecedoras, dependendo da nossa recetividade e também da nossa vontade.

    Registo o que vi e vejo num pequeno caderno que me acompanha sempre e onde registo as avaliações que tenho recebido e outras que peço a pessoas a quem reconheço isenção e competência para o fazer e onde também tenho colocados os meus pontos fracos, que precisam de ser melhorados e que revejo permanentemente – é uma forma de nunca esquecer o que tenho que fazer para corrigir, muitas vezes mudar e, fundamentalmente, aprender.

    Escrevendo enquanto me ia levantando do chão, motivada por sentir que iam publicando as minhas reflexões e que tem significado para mim reconhecimento e respeito por parte do jornal “A Voz de Ermesinde”, uma das valências do Centro Social, preciso de deixar expresso o meu profundo respeito pelo facto de nunca me ter sido perguntada a minha conotação política, a minha orientação religiosa ou qualquer outra coisa que eu sentisse privar-me da minha liberdade que, esse sim, é o segundo maior bem depois da saúde.

    Finalmente refiro que ao ter eliminado os “ruídos” ou interferências, encontrando-me, ao caminhar olhando para o sol, deixando as sombras para trás, o que vi e vejo é que viver, com 51 anos, é como dançar “slow” com a vida e eu aprendi a fazê-lo embalada pelas conquistas, pelas dificuldades, pelas alegrias e mesmo pelas tristezas, fazendo de mim uma mulher feliz!

    A solidariedade e ser-se solidário está muito para além do conceito de senso comum que todos nós temos. Está muito para lá do valor de dinheiro que não compra tudo e não paga tudo, porque falamos de respeito, de atitude, de dignidade e é fundamentalmente por isso que precisei de terminar o meu ciclo de agradecimentos, homenageando a instituição à qual estou ligada e que sobrevive muito à custa da solidariedade que recebe e que depois partilha e distribui.

    Só eu poderei falar de mim e por mim, porque o sentir é meu e a forma de ver e que espelhei no que escrevi também é minha; por isso afirmo que comigo fizeram um excelente trabalho.

    Por tudo o que me tem sido permitido partilhar de mim, por tudo o que tenho recebido, por tudo o que tenho dado, muito obrigado porque, «…o mais é nada», conforme escreveu Fernando Pessoa.

    Por: Glória Leitão

     

     

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