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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-01-2012

    SECÇÃO: Crónicas


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    “O hábito não faz o monge” ou “à mulher de César não basta ser séria, também é preciso parecer”

    Há situações na vida em que não somos vistos nem achados, presumimo-nos sujeitos da ação, somos dela beneficiários mas outros decidem ou decidiram por nós. Não viemos ao mundo por escolha pessoal, não somos homens ou mulheres porque assim quisemos, poderíamos ter nascido neste ou naquele país, no meio rural ou na cidade, em família abastada ou desprovida de posses em diversos graus entre extremos materiais, não encomendámos a cor da nossa pele nem optámos pela crença que nos transmitiram desde o berço, sequer manifestámos preferência pelos valores imateriais que nos foram legados ao longo do processo de socialização. No entanto, depressa tivemos que ser nós a decidir, antes em coisas banais, mais adiante, nas várias fases da vida, em assuntos determinantes para o nosso futuro. Gradualmente, partilhámos com os pais, outros membros da família ou pessoas da nossa confiança a responsabilidade do caminho a seguir. Uns mais cedo, outros mais tarde, assumimos o que melhor se ajustava ao nosso querer, tomámos o leme das nossas vidas. Alguns, por carências materiais, morte prematura ou abandono dos progenitores quando mal abriam os olhos para o mundo, foram empurrados pelo destino sem direito a exprimir anuência ou recusa.

    A assunção de vontade própria quanto a passos futuros surgia envolta em afetividade ao ser insinuada, sugerida ou afirmada pelos pais, ainda na primeira infância, sempre que a criança era inquirida sobre o que desejava ser quando fosse grande. Em épocas não muito longínquas os pais definiam, em termos claros e irrefutáveis, a direção que os filhos deveriam tomar. No campo, aos rapazes estava destinada a atividade dos antepassados mais os sacrifícios e os privilégios que daí advinham, às moças o papel de “fadas do lar”, donas de casa, esposas e mães dedicadas e cedo eram preparados(as) para desempenharem capazmente essas funções. Eles, à medida que “botavam corpo”, aprendiam a executar trabalhos, pouco a pouco mais exigentes, sob a batuta dos mais velhos: guiar os animais para o pasto ou seguir à frente dos quadrúpedes para que o arado ou a charrua que eles tiravam, empunhado(a) pela mão experiente do adulto, descrevesse uma linha horizontalmente escorreita; ceifar e recolher erva, cortar milho em verde, arrancar nabos e outra forragem necessária à alimentação dos bichos, acomodá-la nos carros de bois transferindo-a depois para o depósito, palheiro ou similar; ajudar pais e irmãos mais crescidos nas tarefas que, sozinhos, ainda não conseguiam arrostar; carregar cestos com produtos da terra; cavar e, mais tarde, lavrar; segar feno, centeio e trigo; fazer outros trabalhos que requeriam tempo de aprendizagem e superior dispêndio de energias. As jovens iam aprendendo, também progressivamente, a ajudar as mães na cozinha, os pais e irmãos em serviços agrícolas que requeriam muitos braços e dotes apropriados; seguindo os movimentos das mães, aprendiam a fiar, a bordar, a tricotar para se autonomizarem e aperfeiçoarem nesses e noutros afazeres domésticos.

    LER, ESCREVER

    E CONTAR

    Até meio do século findo, poucos concluíam a instrução primária e só um ou outro prosseguia os estudos. Homens e mulheres opunham-se a que as filhas estudassem porque, no seu entender, o conhecimento da leitura e da escrita servia apenas para trocarem cartas com os namorados; aos rapazes era concedido que aprendessem a “ler, escrever e contar” desde que tal subsidiasse a função primordial de prover à manutenção da família que viriam a constituir. A mobilidade social praticamente não existia porque os possuidores de “boas casas” decidiam entre si os casamentos dos filhos sem que a estes fosse concedida a veleidade de uma preferência livremente assumida. Deste modo, o casamento obedecia mais à conveniência económica do que ao sentimento pessoal.

    A distinção entre as comunidades rurais e as urbanas era significativa nos trajes, nos divertimentos, nas maneiras de falar, em certas regras de conduta. Ir além da 4ª Classe (ensino primário) exigia despesas incomportáveis para quem vivia da agricultura porque as crianças ou jovens tinham que permanecer na cidade durante o ano letivo exceto nas interrupções de Natal, da Páscoa e nas férias grandes, consequentemente, era necessário pagar pensão a famílias que os quisessem receber, além de lhes serem exigidas despesas em vestuário, de tecido e confeção mais apurada, na aquisição de livros e material de escrita entre outras. A alternativa era o Seminário que acolhia rapazes sob regime de internato, em princípio, para se tornarem padres. Havia também colégios de freiras cujo primeiro objetivo consistia em ministrar às suas alunas boa formação moral e religiosa, esperando também que, de entre elas, Deus escolhesse alguma(s) por servas diletas. Depois de satisfeitas certas exigências quanto à regularidade matrimonial e frequência litúrgica dos progenitores e quanto à piedade dos candidatos, estes eram sujeitos a um “exame de admissão” muito semelhante ao estabelecido para frequência do ensino público. O ensino primário concluído com sucesso permitia aos rapazes concorrer à Guarda Nacional Republicana (GNR) ou à Polícia de Segurança Pública (PSP), que lhes assegurava vencimento certo a cada mês, um estatuto superior e “vida mais limpa” como diziam os mais velhos.

    Graças aos seminários e outras instituições religiosas, número muito considerável de rapazes e de moças, provindos(as) de aldeias, alcançaram posições de destaque na sociedade portuguesa, muitos deles prosseguindo estudos por sua iniciativa e a expensas próprias. Porém, mais do que pela instrução alcançada, foi de enorme importância o contributo desses estabelecimentos de ensino para a formação do carácter dos jovens, geração após geração. É pena que muitos estejam, atualmente, desativados por carência de alunos.

    Os jovens da cidade tinham vantagem nesses e noutros capítulos e, por regra, frequentavam o Liceu ou a Escola Comercial e Industrial nela existentes. A maioria estudava até completar o correspondente ao que hoje chamamos 3º Ciclo do Ensino Básico que lhes dava garantia de acesso a emprego público ou equivalente no domínio privado. No primeiro caso contavam-se as Repartições de Finanças, as Câmaras Municipais e Governos Civis, os Correios entre outros; no segundo, destacavam-se os Bancos, Associações de Comércio, etc.. As capitais de distrito tinham Escolas do Magistério Primário a que acediam os postulantes ao professorado para esse nível. O acesso e frequência do Ensino Superior eram quase exclusivos de um estrato superior citadino ou de moradores das três únicas cidades do país com Universidade: Lisboa, Coimbra e Porto. À entrada do último quartel do século XX, este era o desolador panorama do Ensino em Portugal num elevadíssimo quadro de analfabetismo. Hoje, se bem que não tenhamos ainda lugar na linha da frente dos países mais evoluídos em matéria educativa, queimaram-se etapas e o avanço é inegável.

    A DEMOCRATIZAÇÃO

    DO ENSINO

    A democratização do ensino, no seguimento do Movimento dos Capitães em 1974, abriu as escolas a camadas da população até aí excluídas do processo educativo. Pena foi que à lucidez dos novos governantes não tivesse correspondido a imediata compreensão de muitas famílias quanto ao fundamental merecimento da educação para uma vida mais desafogada que, certamente, desejariam que os seus filhos viessem a ter. A fraca apetência, para não dizer a rejeição, de muitos pais em relação à escola, excluiu inúmeros jovens do possível acesso a postos de trabalho mais qualificados e melhor remuneração. A abertura política permitiu o acesso a novas formas culturais através da música, da maneira de vestir, de hábitos comportamentais bebidos em filmes e séries que a televisão, cada vez mais generalizada, transmitia. As sucessivas vagas migratórias registadas desde os anos 60 contribuíram para um desafogo económico sem precedentes sobretudo quando, pouco tempo depois com a adesão à CEE, grandes apoios financeiros deram entrada no país, nem sempre aplicados com equidade e rigor num planeamento adequado à realidade nacional. Gorou-se a oportunidade de dotar o país de sólidas bases não só de um crescimento económico assinalável, que se registou nos primeiros anos, mas de um desenvolvimento sócio-económico que pudesse lançar pontes sólidas para o futuro. Criou-se a ilusão de um bem-estar a que todos julgaram ter direito – e tinham-no sem dúvida – mas que gerou desigualdade crescente entre uma camada de privilegiados e a maioria com direito apenas às migalhas que tombavam da mesa do banquete. Como os bem instalados têm sempre maneira de se esquivar à comparticipação nos sacrifícios necessários ao reequilíbrio económico e os pobres não têm o que dar, é sobre a chamada classe média que impende sempre o ónus de salvar os desvarios dos políticos da casa e a insaciável cupidez dos especuladores financeiros internacionais. As chamadas crises nada mais são do que o resultado do aproveitamento de fragilidades do sistema económico pelos mais bem apetrechados como lapidarmente dizia Warren Buffet, dono de uma das mais importantes agências de notação financeira: « Isto é uma luta de classes e nós, os ricos, estamos a ganhá-la». Os portugueses encontram-se, neste momento, no “olho do furacão”. Pior do que todos os sacrifícios a que nos sujeitam, é o desânimo que vai tomando conta das pessoas na convicção de que tudo isto pode resultar em…nada.

    Se o mesmo acontece a outros países da Europa pertencentes à dita Zona Euro, num futuro mais ou menos distante, pode afetar outros países nas mais diversas latitudes. O Brasil, país emergente, encontra-se, para já, em situação bem melhor do que a nossa, se considerarmos os indicadores macro-económicos conhecidos, ainda que subsistam grandes massas da população à margem dos benefícios a que, legitimamente, todos aspiram. A euforia desenvolvimentista é potenciada pelo otimismo com que os brasileiros encaram a vida. A melhoria económica registada leva, tal como na Europa, muitos brasileiros a considerarem a religião e os valores que fundamentam a própria civilização secundários, se não de todo dispensáveis. Muitos dos que possuem bens de fortuna ou apreciável situação económica e profissional podem usufruir de tudo quanto há de melhor no país e no mundo, prescindindo de considerações limitadoras aos seus anseios. A Ciência e a Técnica recriam o mundo a cada dia que passa, parecem sobrepor-se a toda e qualquer ideia de transcendência. Pois não clamam os cientistas a não existência de Deus? O Universo criou-se sem qualquer intervenção divina como parece indicar a Teoria do Big-Bang. Falta só a demonstração de como surgiu a matéria e, para tanto, o acelerador de partículas, construído algures na Suíça, “pode” desmentir a crença num Deus Criador e, quando julgarem ter encontrado a resposta, os cientistas proclamarão ironicamente “urbi et orbi” que «Deus foi a mais bela história criada pelo homem», como um deles já afirmou. Nietzsche não proclamou, há mais de um século, “a morte de Deus”? Pois então? Se Deus morreu, – «a história é perene conflito entre a vontade do forte e a resistência tenaz da moral comum e codificada à qual se agarram os fracos» (*) – as religiões e seus valores, que têm servido de âncora aos humildes, perderão todo o sentido. Seria abusivo de minha parte acusar alguém de defender tais posições, só porque abusou das normas que a religião impõe aos seus representantes. Mas a um candidato ao sacerdócio católico ou, ainda pior, a um sacerdote, exige--se que proclame a verdade mas que aja de acordo com aquilo que defende na sua ação evangelizadora e pastoral. O meu amigo Wilson, de Campinas, cidade do Estado de S.Paulo, relatava-me, há umas semanas, que alguns seminaristas já adiantados teriam feito exibição nada condizente com o decoro recomendável a futuros ministros católicos numa piscina daquela cidade. Um periódico local fez-se eco do mal-estar provocado pela leviandade dos jovens. Wilson censurou, na sua página do Facebook, a postura dos ditos rapazes. Os comentários a essa crítica não se revelaram favoráveis ao meu amigo; uns defenderam a atitude dos jovens, outros não gostaram da “pregação de moral” que tinham acabado de ler. Wilson relatou casos ainda mais estranhos conhecidos pela autoridade eclesiástica diocesana. De um modo geral, os jovens que demandam o Seminário são oriundos de famílias de bons costumes e de sincera fé religiosa. Admitindo que, nos Seminários, recebem uma sólida formação moral com vista ao sacerdócio como era tradicional, não se compreendem atitudes desse nível. Quando receberem ordens, tais jovens fazem votos de pobreza, castidade e obediência e são enviados para guiarem o Povo de Deus. Não bastará terem a preparação humanística e teológica necessária e até dons que os recomendem para o exercício desse múnus, é imprescindível que sejam exemplos dos ensinamentos de Cristo. Como poderão servir a comunidade que lhes for confiada se não derem bons exemplos de vida, se não mostrarem coerência entre a mensagem que divulgam e a própria forma de a viverem?

    (*) Michelle Federico Sciacca, in “História da Filosofia”, volume 3.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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