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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-12-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    A cada qual o seu Natal

    Cachos de uva pendem do teto em filas, de um ao outro extremo da sala. Estão ali desde que, ao vindimar, o chefe da família escolheu, criteriosamente, de entre as castas tradicionais, as que deveriam ficar para a quadra natalícia já passotas,* concentrando maior grau de doçura. Predominavam os moscatéis, os bastardos, as tetas de cabra que enchiam a sala de perfumes a início de outono, acrescidos dos que provinham das tigelas de marmelada que as donas de casa punham nos peitoris das janelas para que fossem perdendo o excesso de humidade até surgir uma boa ocasião de irem à mesa de visitas importantes, quando não satisfaziam a gula dos mais pequenos que aproveitavam ausências da mãe para cavar subterrâneos sob a crosta sem que elas denotassem vestígios da malandrice e só dessem pelo logro muito mais tarde. Permita-me o leitor que faça aqui um parêntesis para deixar referência a uma ação mais frequente do que possa crer. Em quase todas as famílias se verificavam casos destes não porque as mulheres desconhecessem a probabilidade de tal vir a ocorrer, mormente em famílias numerosas que constituíam a regra geral, mas porque o controle da consciência infantil era, com frequência, sobrepujado pela tentação da gula. Tanto assim era que a literatura oral adotou o leitmotiv da lambarice infantil que tinha por alvo a deliciosa marmelada caseira que as mães faziam e punham a “curar”. Eis um exemplo de lengalenga muito conhecido:

    Eu sou pequenina

    Não sei fazer nada

    só sei ir à cozinha

    a comer a marmelada.

    Estivesse onde estivesse a malga da marmelada, as crianças poucas vezes resistiam à tentação de meter o dedo onde não era bem vindo e de levar à boca a camada que trazia consigo, fazendo o possível por não deixar indícios na superfície violada. Provavelmente, noutro canto da casa, descansariam as maçãs verdiais**aciduladas que, ao longo do inverno, satisfaziam as papilas gustativas dos adultos antes de terminarem os serões. Em casas mais abonadas, havia nozes, figos e ameixos secos. Nas aldeias em que figueiras e ameixoeiras não vingavam, os respetivos frutos adquiriam-se em troca direta por artigos que noutras havia em maior abundância como batatas, castanhas ou centeio. Esses frutos eram postos a secar sobre palha, em determinada sala que adquiria o nome de “sala da fruta” ou semelhante e, a seguir, guardados para ocasiões especiais.

    Prestes a chegar o Natal, armava-se o presépio: crianças, jovens e adultos saíam, de cesta no braço, à procura do musgo mais fresco e mais bonito que pudessem encontrar e com ele, algumas pedras, papel prata, guiços,****palha, areia ou terra, cartão, figuras em barro cozido e pintado e outro material simples edificavam a gruta onde colocavam o Menino , a Virgem Maria, sua mãe, e S. José, seu pai adotivo, a vaca e o burrinho e procuravam imitar o ambiente campestre em que, supostamente, Jesus teria vindo ao mundo. Com as pedras e o musgo figuravam montes e vales onde pastavam ovelhas e caminhos serpenteantes percorridos por pastores com cordeiros ao ombro, os Reis Magos montados nos seus camelos e ingénuos bonecos de músicos a tocar os seus instrumentos, de soldados garbosos nos seus uniformes, homens e mulheres de aspeto rústico e um conjunto de outros figurantes saídos da fértil imaginação popular; com o papel prata pretendia-se significar os cursos d’água; com o cartão, faziam-se castelos ameados e outras construções dentro das quais punham velas que eram acesas apenas durante a ceia. Não havia árvores de natal, nem velhos de barbas brancas roupa vermelha e saco cheio de presentes, muito menos embalagens coloridas dentro das quais se supõe estarem contemplados os desejos cada vez mais sofisticados e exigentes da miudagem. Dias antes, adquiria-se o bacalhau e o azeite necessários para a Ceia de Consoada. Se o bacalhau exigia deslocação à cidade na feira de 21, nas terras onde não medravam oliveiras, o azeite era adquirido aos vendedores ambulantes de Carção ou Argozelo, de ascendência cristã-nova, homens especialmente vocacionados para o negócio que, de tempos a tempos, ali passavam, puxando os burros pela arreata carregados com recipientes de latão ou odres de couro e canecas metálicas de litro e de quartilho para satisfazerem as necessidades dos aldeões segundo as respetivas posses e carências. Porque desenhavam percursos longos que exigiam pernoitas fora de casa, comiam nas tabernas dos lugares visitados e dormiam em palheiros que boas almas punham à sua disposição. Além do bacalhau e do azeite, havia batatas da última colheita, couve penca vinda da horta pouco antes de ser confecionada a ceia, vinho trazido da adega quando a mesa estivesse posta. Para terminar, comiam-se as rabanadas ainda quentes, as filhós, o arroz-doce e um ou outro mimo de mulher mais habilidosa e com mais tempo para dedicar à culinária. Embora, tradicionalmente, os transmontanos sejam fartos e hospitaleiros, não punham acento especial nas comidas e bebidas da Consoada. Muito mais do que uma mesa abundante, imperava o espírito familiar e religioso da festa, o agradecimento ao Deus-Menino pelas bênçãos recebidas e a alegria de estarem juntos nessa noite, mais que todas, digna de celebração. Dali a pouco, todos iriam à Missa do Galo, arrostando a inclemência do clima, os homens com a tradicional roupa de pardo,*** camisolas e meias de lã natural, as mulheres com saias, meias e xales da mesma matéria-prima, com socos típicos calcando a terra dos caminhos endurecida pela geada, rumo à igreja, mais arranjada do que ao longo de todo o ano e profusamente iluminada com velas de cera. A celebração litúrgica terminava com a cerimónia de “dar o Menino a beijar”, momento em que cada pessoa caminhava na direção do altar onde o sacerdote lhe estendia a imagem do Deus recém-nascido que ela beijava devotamente. No regresso a casa, a mãe servia o chocolate bem quente, bebido com vagar, ao calor da lareira reavivada, acompanhado de rabanadas e filhós. Os presentes, mais simbólicos do que outra coisa, só eram conhecidos na manhã seguinte. As crianças mal dormiam na expectativa duma prenda que podia ou não corresponder aos seus desejos imediatos mas que era sempre recebida com imensa alegria. Radiantes, corriam a mostrá-la aos progenitores.

    Durante anos, vivi o Natal dos trópicos, a que, com propriedade ou sem ela, costumo chamar Natais Brancos, e os natais da cidade, todos iguais na essência mas tão diferentes na forma. Nas zonas urbanas deste país, o acontecimento que justifica tal festa – o nascimento de Jesus – está cada vez mais ausente do espírito quer individual quer coletivo que o cristianismo lhe imprimiu. Privilegiam-se a mesa abundante, sobretudo a doçaria, a teatralidade da distribuição de presentes feita ao fim da noite pelo Pai Natal que, geralmente, é um familiar adulto que nada faz para ocultar a sua verdadeira identidade, e a efémera alegria dos mais pequenos que, quase sempre já sabem o que lhes é entregue. Nos trópicos, as classes médias e a classe alta fazem questão de prover a mesa com artigos importados: bacalhau, azeite, vinho, nozes, castanhas, figos e outros, em grande parte originários de Portugal. Adicionam-lhes patês franceses, quiçá caviar legítimo do Mar Negro e raridades tais. À medida que decrescem os proventos familiares, a ementa torna-se mais simples mas há sempre lugar para a satisfação de algum desejo, que seja uma vez por ano. Via de regra, revive-se o mistério do nascimento divino e, na Sagrada Família, encontra-se a inspiração para o convívio familiar.

    1 Passotas (regionalismo transmontano) - passas. Aplicado a uvas, cerejas e outros frutos

    2 Maçãs verdiais (region. transmontano) espécie de maçã ácida, ótima para ser degustada em tempo frio.

    3 Roupa de pardo (region. transm.) - roupa de lã grosseira, burel.

    4 Guiços - (region. transm.) - lenha miúda, pontas secas dos ramos.

    Por: Nuno Afonso

     

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