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Edição de 29-02-2024
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    Arquivo: Edição de 10-12-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    Naufrágio de um país

    A noite sucede a um dia de intenso trabalho à espera de uma nova manhã no perene decurso do tempo, como horizonte apenas a vastidão do oceano. Estão longe da terra e dos familiares, do círculo de amizades que construíram, porque a vida assim o exige. O mestre ordena que todos repousem, ele velará pela segurança própria e dos companheiros. Tudo aparenta calma dentro e fora da embarcação. Pela madrugada e, de um momento para o outro, mudam as condições atmosféricas, o vento entra de soprar com raiva, as águas agitam-se, a procela abate-se com fúria, crescem ondas de vários metros, o "Virgem do Sameiro" parece casca de noz, em extremo vulnerável face à violência das vagas, ao estridor provocado pelo inesperado temporal, ora é levantado na crista de uma onda, ora desce quando ela se desfaz e outra o ergue de novo num bambúrrio entre mãos de gigantes. Em pouco tempo - minutos? Horas? Impossível calcular - o navio é tomado pelas águas, inunda-se a casa das máquinas, o barco está em risco iminente de soçobro. Não há meios de comunicar com o exterior. Por falta de contacto, em terra, cresce o receio de que uma tragédia tenha acontecido tanto mais que o mau tempo também ali se faz sentir.

    O mestre grita aos companheiros, todos se levantam tomados de um sentimento de quase pânico. Desde logo, apercebem-se de que nada podem fazer para salvar o navio, a carga e a própria vida. Estão sós com a sua Fé de que o auxílio virá do Alto e lutam para contrariar o que sabem inevitável. Lançam mão do último recurso material, a balsa salva-vidas que já vem apetrechada com o indispensável em situações extremas: água e um suplemento médico-alimentar em forma de pastilhas capaz de os manter por algum tempo, só Deus sabe quanto, até que avistem alguma embarcação e possam sinalizar-lhe a sua presença. Para tanto, dispõem de alguns "very-light" que serão disparados apenas quando houver condições de serem vistos.

    Do porto da Figueira da Foz, na ausência de qualquer contacto, é lançado o alarme, começam as buscas, os media transmitem à população a notícia do naufrágio, meios aéreos e marítimos dirigem-se para o local onde, previsivelmente, poderão encontrar-se navio ou sobreviventes. Ao longo de muitas horas, acompanha-se o drama daqueles homens que ninguém sabe se vivem ou pereceram na tormenta. Vieram do Norte, das Caxinas (Vila do Conde) e encontravam-se muitas milhas para além da Figueira da Foz, longe da sua terra de origem. Logo que o triste acontecimento foi conhecido, família e amigos dos pescadores expressaram, mais do que apreensão, a dor pressentida do luto. Esposas e filhos que, como há séculos, "de coração nas mãos", os têm visto partir, saíram para a rua a manifestar a dor da perda dos seus entes queridos. O país inteiro lamentou o sucedido e solidarizou-se com as famílias atingidas.

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    Contrariamente ao que se tinha como certo, os sobreviventes do naufrágio foram localizados e resgatados por um helicóptero não obstante as condições adversas da meteorologia que puseram à prova a perícia, a preparação e o humanismo dos socorristas. Mal foi conhecido o êxito do salvamento, a população rejubilou e, na terra natal dos náufragos, vizinhos, amigos e desconhecidos vieram expressar às famílias a sua alegria. Todos foram recuperados e só um deles necessitou de internamento hospitalar. A chegada dos pescadores foi acompanhada com grande emoção que os media não deixaram de reforçar. O mestre do navio perdido referiu alguns dos momentos mais dramáticos: a disciplina no interior da balsa, a necessidade de recorrer a meios fortes de persuasão para acalmar excessos (um dos tripulantes não conseguiu controlar o pânico e foi preciso que o mestre lhe aplicasse dois murros e que o atassem de mãos e pés para evitar que se lançasse ao mar), as orações rezadas em grupo ou individualmente, o lançamento de cada very-light sempre que vislumbravam embarcação nas proximidades, a promessa de irem a Fátima agradecer à Virgem a sua intercessão, em caso de salvamento.

    Este acontecimento real e bem próximo parece-me adequada metáfora à situação vivida, atualmente, em Portugal, desde logo devido à nossa estreita relação com o mar. Boa parte da nossa população estabeleceu-se no litoral em atividades relacionadas com o mar mesmo antes de nos constituirmos como nação. Foram a pesca e o comércio marítimo que nos projetaram para o mundo séculos antes da gesta dos Descobrimentos, para muitos estudiosos um dos marcos civilizacionais mais relevantes na História humana, refazendo antigos mapas da Terra, acrescentando novos conhecimentos não só nas artes de marear como também noutras áreas, desde a Biologia à Física, da Geografia à Matemática, aprendendo a dominar os fenómenos da natureza e os oceanos, aproximando povos, traçando rotas sobre as quais se erigiu o mundo moderno e contemporâneo. Este país foi o principal impulsionador do progresso humano que nos séculos XV e XVI se registou em todo o orbe, visto que as nossas naus e caravelas chegaram a todos os continentes, inclusive às terras mais longínquas da Ásia, como a China, o Japão e as ilhas da Oceânia.

    Portugal é terra e mar numa simbiose inigualável. Nos tempos mais recentes tem-se inclinado mais para o continente, todavia a nossa vocação primeira é, sem dúvida, o oceano. Portugal é uma embarcação em alto mar tal como o Virgem do Sameiro. Ao contrário deste, que teve um timoneiro competente, o nosso país foi dirigido, nos últimos tempos, por homens incapazes de interpretar os sinais do tempo e de tomar as medidas adequadas às circunstâncias, deixando-o em condições de extrema vulnerabilidade face à tempestade desencadeada pelo sistema económico-financeiro que domina a sociedade mundial. Enquanto isso, a população deixou-se adormecer e, quando se deu conta, estava em grande risco de soçobrar. Os dirigentes tiveram que pedir socorro para evitar o naufrágio. As instituições, junto das quais intercederam, vieram em nosso auxílio, mas as operações de salvamento não foram desinteressadas. Fizeram exigências, impuseram-nos condições que não podíamos recusar. Salvámo-nos da insolvência, ficámos obrigados a aceitar uma pesadíssima fatura que tentaremos satisfazer, sujeitos que estamos a sucumbir aos remédios que temos de tragar. O navio ainda não se afundou, porém grande parte da tripulação pode não resistir para o levar a porto seguro e tirar daí a garantia de uma vida futura com dignidade.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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