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Edição de 30-04-2024
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    Arquivo: Edição de 30-11-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    Falar verdade ou mentir

    Por mais desgaste que a palavra tenha sofrido ao longo dos tempos e dos tratos de polé que ainda, e cada vez mais, vá recebendo, a verdade continuará a ser fundamental para uma tolerável convivência num mundo ferozmente injusto, cruel e desumano. Assim me ensinaram os meus pais – ressalvando, naturalmente, o juízo acerca do mundo que é da minha inteira responsabilidade – e, de igual modo, o transmiti aos meus descendentes. Estou convicto de que tudo quanto sofremos hoje é consequência da perda desse bem inestimável que é o amor pela verdade. A constatação de que assim é conduz-nos à desconfiança, à dúvida ou à descrença acerca de tudo o que nos rodeia.

    Mas quem de nós poderá afirmar que nunca mentiu nem sequer a si mesmo? Refiro-me, naturalmente, à mentira, em sentido lato, que se reflete nas relações com os familiares, os amigos, os vizinhos, os companheiros de trabalho, aqueles com os quais interagimos diariamente mas também em relação aos órgãos representativos da sociedade a que pertencemos. Quem jamais ludibriou o fisco, foi conivente com outros que o fizeram ou tentou eximir-se a uma obrigação social, sob qualquer pretexto inverídico ou questionável, que atire a primeira pedra.

    Ocorreu-me falar sobre a verdade e o seu antónimo, a mentira, ao ler, na “Visão” n.º 975, a notícia de que havia uma novidade no mercado livreiro, o lançamento do livro “Mentirosos Natos” do britânico Ian Leslie. O autor afirma que todos mentimos e, apesar de o sabermos, ficamos surpresos, porventura indignados, por nos colocarem à frente dos olhos um espelho que talvez seja a única coisa no mundo existente que nos revela toda a verdade. Na realidade – afirma o autor – «estamos programados para mentir, nós e os outros, e essa faculdade é mesmo um requisito essencial para liderar». E acrescenta: «Aqueles que melhor manipularam os outros, afastando-os da comida e dos parceiros, foram os que sobreviveram. Os que aprenderam a convencer-se de que eram capazes, fosse subir a uma árvore ou combater uma doença, também. Somos um triunfo da imaginação sobre a realidade».

    Mas há mentiras e mentiras. Quando encontramos alguém que não víamos há muito tempo, somos capazes de sair com uma frase do género: «Parece que o tempo não passou por si (ti), está(s) com ótimo aspeto!», ainda que já não nos lembremos de como estava no último encontro; ou então, sobretudo face a uma senhora: «Está cada vez mais elegante!», mesmo que lembre um saco mal atado. E, se nos ofereceram um presente abominável, trazemos ao rosto uma expressão de contentamento e dizemos: «Adivinhou os meus desejos, era isto mesmo que eu queria». Tais atos de fala e inúmeros outros que preenchem a nossa vida em comum não passam de mentiras ainda que piedosas, bem intencionadas e até benéficas em muitas situações. Delas diz o povo que “não fazem mal a ninguém” como a cautela e os caldos de galinha. E, não deixando de ser mentiras, podem elevar a autoestima e a boa disposição daquele(a) a quem são dirigidas. É, pois, um critério moral que distingue estas das que prejudicam, ofendem o bom nome de alguém, caluniam, expondo os visados à execração pública e à condenação pelas instâncias judiciais. Quantos seres humanos são condenados devido a mentiras, pronunciadas em tribunal, por falta de rigor, desonestidade, ódio ao visado, interesse material ou de outra índole no seu afastamento do convívio em liberdade! Na ação política, a mentira tornou-se banal o que, compreensivelmente, indigna os governados sobretudo quando dela resulta grave prejuízo público. Curiosamente, para muitos, a mentira, que resulta em benefício do mentiroso mas é compensada pela sua eficaz e reconhecida atividade governativa, é desculpada e o seu autor premiado em sufrágio eleitoral, que não no juízo ético dos cidadãos. Respeitando embora o sigilo sobre individualidades conhecidas, induzi o leitor a reconhecê-los pelo que a mentira aqui presente é da responsabilidade da lei. Por uma razão ética que visa proteger a honra de alguém enquanto o veredicto a seu respeito, em sede própria, não transitar em julgado, somos mentirosos, eu e o leitor que deixamos o gato escondido com o rabo de fora e, sobretudo a lei que, no intuito de proteger o arguido, nos estimula a proceder assim.

    Significativamente, é da área política que vem a maioria dos vocábulos enriquecedores do léxico da língua, talvez porque os políticos sejam os maiores e mais perigosos autores da mentira. E como a língua é um organismo vivo, que acompanha o desenvolvimento do homem em todas as vertentes, tem-se adaptado com mestria aos novos tempos. Os políticos são figuras públicas sujeitas ao olhar e ao escrutínio recíproco e do povo e, sabendo que a linguagem é a ferramenta que mais utilizam na sua atuação, concentram nela todas as suas capacidades intelectuais, utilizam todos os recursos que ela põe à sua disposição para impressionarem os ouvintes e, por entre os pingos da chuva, escaparem enxutos nas situações mais difíceis. Desses esforços surgiu, há anos, a palavra “inverdade” como sinónimo de mentira mas sem a conotação pejorativa que esta contém. Muito bem sabem que chamar mentiroso a um adversário, na troca permanente de argumentos, pode trazer-lhes sérios danos legais. Não podem atrever-se a dizer-lhe que está a fazer uso de mentiras para fundamentar os seus raciocínios. Então, nada melhor do que um termo livre da carga negativa, que o sinónimo corrente traz consigo, para atingir idêntico objetivo. Dirá: «O senhor deputado fez duas afirmações que são, no mínimo, duas inverdades».1 Vale o mesmo que dizer duas mentiras o que não conjugaria com o elegante tratamento de senhor deputado.

    A História de Portugal oferece-nos um quadro em que a verdade e a mentira andam a par, iluminadas pela religião que ora valoriza a primeira, ora encobre a segunda “com o manto diáfano da fantasia” e por um exacerbado nacionalismo responsável por façanhas maiores «do que prometia a força humana» e por ações de uma torpeza quase inacreditável. Assim no-lo dizem gigantes da nossa Literatura: Camões, Fernão Mendes Pinto (Fernão Mentes? Minto), Alexandre Herculano e outros.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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