As mil facetas dum homem de bem
O Manuel dormindo tranquilo dentro do moinho d’ó Renobil enquanto o irmão andava reloucado 1 à sua procura; o Manuel a comer um carolo de centeio debaixo de uma roseira, no cemitério, numa noite de verão; o Manuel filho de lavrador mas guardando distância das ganchas e da charrua, quanto lhe era possível; o Manuel amigo da pândega e dos copos; o Manuel “justificando” a sua performance reprodutora com o facto de só ter uma mulher; o Manuel dono do primeiro automóvel que entrou na sua aldeia pelos anos 40 do derradeiro século; o Manuel filósofo, sociável, bem disposto, mais interessado em fruir o momento do que em viver antecipadamente o futuro ou em fazer análises do passado; o Manuel, alheio a crises existenciais, que expressou em verso as suas crenças, as suas emoções e os seus anseios, já então Manoel, rendido à pátria dos seus netos… ele foi tudo isso e muito mais. Talvez a sua vida não desse um filme nem um romance porque um e outro pertencem ao mundo da ficção enquanto o Manuel aspirava ao que havia de mais simples e natural: «Olhai as aves do céu que não semeiam nem colhem nem guardam em celeiros mas o vosso Pai do Céu lhes sustenta a vida…». Embora contrariado, forçoso era sujeitar-se aos ditames divinos: «Comerás o pão com o suor do teu rosto».
Os temporais do outono, chuvas persistentes, nevões e duras geadas do inverno mudavam os hábitos dos aldeões. Terras decruadas 2 e vimadas 3, faziam-se as sementeiras, de setembro a novembro ou até um pouco mais tarde se o estado do tempo o permitisse. Más condições atmosféricas impediam os lavradores de sair para o campo e as noites espreguiçavam-se entre o pôr do sol e a hora de dormir, mais tardia. Depois do toque das Trindades, família reunida em torno da lareira, a “mãe” descia a mesa do escano sobre a qual estendia toalha de linho e distribuía pratos e talheres, consoante o número de familiares, para servir a ceia. Mais demorada era a Bênção da Mesa, a cargo do chefe de família, cadeia de pedidos de intercessão a um ror de santos da Corte Celeste cada qual seguido de um pai-nosso e de uma ave-maria, os mais velhos concentrados nas rezas e as crianças a remexerem-se e a inticarem 4 umas com as outras, tentando esquivar-se ao olhar severo dos pais. Mesa erguida e de novo presa ao escano, era costume deitar os mais pequenos e ir acomodar a cria 5, trabalho este de que se encarregava o progenitor ou um dos filhos mais velhos acompanhado de alguém que transportava o lampião para lhe iluminar o caminho. A vela dava azo a que se contassem histórias passadas na aldeia a maioria das quais sobre “almas do outro mundo”, assombrações, luzes estranhas nas lonjuras que persistiam guardadas na memória coletiva, assim como outros fenómenos que ninguém sabia explicar. No íntimo das pessoas, insinuava-se o medo que a escuridão, lá fora, robustecia. Por via disso, ir à igreja, de noite, sozinho(a) ou passar junto ao cemitério eriçava os cabelos ao mais afoito.
Para o fim do serão, membros da família e eventuais convidados deliciavam-se com maçãs verdiais de excelente paladar acidulado adrede conservadas para esse fim, figos ou ameixos 6 secos acompanhados de um gole de aguardente ou de vinho.
Numa dessas noites de outono fria e escura como se o firmamento estivesse de luto carregado, o António preparava-se para ir ao moinho d’ó Renobil, que os da aldeia estavam ocupados ou temporariamente inativos, ver como andava a moenda do centeio e recarregar a tremonha por mais umas horas. Era longe, para lá de meia dúzia de quilómetros de maus caminhos e piores atalhos, já no termo de Castrelos. O Manuel, com nove ou dez anos, pediu que o deixassem ir com o irmão mais velho e, depois de muita insistência e umas quantas recusas, lá conseguiu convencer o pai a fazer-lhe a vontade. A mãe vestiu-lhe uma camisola de lã caseira e o pequeno enfiou-se na jaqueta do irmão dois anos mais velho; o António empunhou o lampião e alcançou a gorra pendurada num gancho do corredor. Saíram para o exterior, tentando acertar a velocidade do andamento. Passaram as últimas casas, deitaram ao caminho da Veiga e já iam perto da ermida de Santo Amaro quando o António se apercebeu de que tinha esquecido uma ferramenta indispensável para o bom desempenho do seu trabalho. O remédio era voltar para trás mas quis poupar ao rapazinho esse esforço. Explicou-lhe a situação e garantiu que não iria demorar, que até lhe faria bem dar uma corridinha. Ele deveria ficar ali sentado na parede que bordejava o lameiro dos Rijos e esperar que ele chegasse.
– Olha Manuel, não saias daqui. Eu vou num pé e venho no outro. Não vás ali para a ribeira que podes cair à água.
– Está bem, vai descansado! –, respondeu ele com toda a tranquilidade.
Saiu dali disparado caminho acima e chegou a casa em menos de um credo. Fez o caminho inverso ainda mais depressa porque a descer todos os santos ajudam. Mas, ao aproximar-se, pareceu-lhe que o sítio onde deixara o irmão estava vazio. Assustado, gritou o seu nome mas não obteve resposta. Gritou ainda mais alto mas só ouviu o eco da própria voz. Procurou nas imediações do pontão que atravessava a ribeira, sem êxito, continuou a chamar, desviou as folhas dos amieiros mas de nada lhe valeu. O Manuel não estava por ali. Seguiu em frente, sempre a chamar e tentando descobrir nos movimentos dos arbustos das margens, o surgimento do rapaz. Do susto inicial impregnado de esperança logo foi tomado pelo medo, uma aflição que lhe invadia o peito, até quase o sufocar, e o cérebro num misto de acusação e desculpa: «Porque não o levei comigo? com crianças todo o cuidado é pouco, fui mais criança do que ele. mas para que havia de o cansar, já bastava a caminhada até ao moinho que fica tão longe. e se um lobo o levou? ****** aqui não andam lobos, isso é lá p’rá serra. se não foi lobo, podia ter-se enganado no caminho e andar por aí perdido. mas se andasse perdido, respondia aos meus gritos. se calhar, foi andando e, como o meu passo é mais largo, encontro-o já aí adiante.». Caminhando e chamando sempre, já a deitar o coração pela boca, quando deu por ela, estava a chegar ao moinho. Mas, ao meter a mão no bolso à procura da chave, não a apalpou, procurou-a nos outros bolsos e…nada. Por instinto, pôs a mão no cravelho da porta que, de imediato se abriu. E eis que, à sua frente, estava o Manuel, com um saco vazio por cima, a dormir profundamente. O António entrou, encostou--se à parede e ali ficou a olhar para o irmão e a deixar que a mente e o coração serenassem. Depois, tirou a jaqueta e, carinhosamente, colocou-a por cima do Manuel. Verificou se tudo funcionava bem, deitou mais grão na tremonha e, por sua vez, encostou a cabeça num dos sacos e ajeitou-se o melhor que pôde para umas horas de merecido descanso.
Quando o tempo ajudava, garotos ou adolescentes reuniam-se no largo d’à Bica e entretinham-se a jogar à cabra cega, ao perugalo ou às escondidas. Neste último jogo, o Manuel não tinha competidores pela sua inteligência, sagacidade e coragem. Escondia-se nos lugares mais improváveis. Alguém se lembraria de ir procurá-lo no cemitério depois que as sombras desciam? E ainda que alguém tivesse a ideia, cadê a coragem para entrar no campo santo? Nesse tempo, não havia chaves nem aloquetes porque os mortos não saem das suas moradas e as campas rasas não atraíam as atenções dos assaltantes. Os vivos podiam entrar crer-se-ia para rezar pelo repouso dos seus entes queridos. Poucos se atreveriam a devassar a tranquilidade dos mortos por um motivo fútil até porque a morte, sendo certa, infunde grande temor. O Manuel sabia que ali não correria nenhum risco e dificilmente lá iriam à sua procura. Certa vez, no entanto, alguém foi tão corajoso como ele. Encontrou--o, escondido atrás de uma roseira, a mastigar um cibo 7 de pão que trouxera no bolso das calças. Ao contrário do que é habitual, quem ficou com a fama de herói não foi quem o encontrou mas o que se fez encontrado.
Entre os filhos do senhor Alípio, nenhum se distinguiu pelo apego à agricultura não obstante o bom exemplo do pai. O Manuel, embora contrariado, obedecia às suas ordens mas talvez nunca tivesse a firme intenção de se tornar lavrador. O pai, autodidata, despertou nos filhos o gosto pelo estudo e o Manuel foi um dos primeiros a concluir com sucesso a instrução primária na sua aldeia há um século. Infelizmente, tornava-se muito oneroso para um lavrador com muitos filhos a prossecução dos estudos pelo que o Manuel, como os seus irmãos, tinha um horizonte limitado. Viveu na casa paterna até ao casamento e no seu lar nasceram oito crianças, a mais velha dos quais faleceu ainda muito jovem. Inconformado, emigrou para o Brasil onde viveu o resto dos seus dias na companhia da esposa e dos sete filhos. Contava ele, com a sua característica verve que, presente a um juiz por motivo fútil, este achou necessário fazer-lhe algumas perguntas do foro pessoal: «O senhor é casado? Sou sim, senhor doutor juiz. Tem filhos? Tenho sim. Quantos? Só tenho sete. Só? – inquiriu o magistrado, não por achar a prole diminuta mas por lhe parecer que o interrogado assim a entendia. O Manuel, abrindo um sorriso, esclareceu: Que quer senhor doutor juiz? Numa mulher só era difícil ter mais». E, ao contar a história, ria-se e contagiava a assistência.
Enquanto viveu na aldeia, passava muito do seu tempo com os amigos da cidade entre os quais se contava o dono de uma taberna onde bebia os seus copos. Certa vez, regressou a casa num carro de modelo antigo, creio que um Ford que já vivera a sua juventude e parecia ter ultrapassado a idade madura mas que já sofria de moléstias complicadas. A garotada correu atrás dele como acontecia sempre que qualquer veículo se afoitava por aqueles caminhos. Atribuíram-lhe a propriedade mas estou em crer que teria sido uma experiência que não teve seguimento.
Inteligente e com sentido de humor, costumava dizer boutades como esta a propósito do adágio antigo:
- Guarda que fazer, não guardes que comer, porque o comer estraga-se, o trabalho não.
Como tantos outros portugueses, o Manuel emigrou para o Brasil precisamente a meio da 20ª centúria. Os seus descendentes eram só (no sentido literal) sete, hoje são centenas se considerarmos os colaterais. Foi um excelente povoador.
1 reloucado – aflito a ponto de ficar perturbado;
2 decruadas (terras) – que tiveram a 1ª lavra com vista à sementeira;
3 vimadas (terras) – que tiveram a 2ª lavra;
4 inticarem – meterem-se uns com os outros;
5 acomodar a cria – alimentar os animais de trabalho;
6 ameixos – o m.q. ameixas (pequenas);
7 cibo – pedacinho, bocado.
Por:
Nuno Afonso
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