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    Arquivo: Edição de 20-09-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    Cada era com seu uso, cada roca com seu fuso

    O tio Sitote fazia piões, daqueles que nós púnhamos a dançar no pátio da escola ou fazíamos saltar para a palma da mão e nos deixavam fascinados enquanto giravam até caírem para o lado, entontecidos. Aparentemente simples, este brinquedo era constituído por um objeto piriforme (em forma de pêra), de madeira rija (sardão, freixo ou buxo) com um ferrão na parte mais estreita e um cordel de fios de algodão entrançados, que, em nossas terras, recebia o nome de baraça. O jogo do pião tinha uma técnica e um vocabulário próprios. Havia quem soubesse tirar dele o máximo rendimento, traduzido em tempo de rodopio. Saber “furtar a baraça” como mandavam as regras, dar ao corpo a inclinação adequada e usar a força que o fazia adormecer por mais tempo não era para todos. Como na generalidade dos jogos, fazia-se necessário associar força e técnica para se tornar um campeão. “Ninguém gosta de perder, nem sequer a feijões”, diz o provérbio. Para alguns “galar” o pião do adversário equivalia a acertar-lhe um murro valente ou um “biqueiro” com toda a raiva. Escachar o pião do concorrente era a suprema glória para um e a maior humilhação para o outro. Muitas vezes, daí resultava briga feia e estragos físicos correspondentes à força dos contendores, sobretudo quando entre eles havia grande desnível de tamanho e agressividade. Está implícita na atividade lúdica a tendência para o confronto, o conflito, a desavença e, a culminar, a violência. Evidentemente, nem sempre isso acontecia, talvez as exceções fossem mais numerosas do que a regra porque os pacifistas costumam estar presentes e não deixam que se extremem posições.

    Como tem havido espécies de seres vivos que se vêm extinguindo ao longo dos séculos, o mesmo acontece a muitos hábitos, tradições e jogos, quase todos os que caracterizaram o tempo da nossa infância e juventude. O jogo do pião é um deles. Recentemente, a revista “Visão” distribuiu alguns dos mais emblemáticos desses objetos, incluindo este que tanto me fascinou. Além do pião, havia as cordas de saltar (para as meninas), o ioiô, os berlindes (bolas de gude, no Brasil) 1, o mikado, as caricas e vários outros, praticados quer por crianças e jovens da cidade, quer pelos que viviam no campo. Na chamada Terra Fria transmontana, em virtude do isolamento e da falta de recursos financeiros, faziam-se jogos com paus, com pedras e com objetos em ferro utilizados na agricultura. Um dos mais generalizados nos meios rural e urbano era, precisamente o jogo do pião.

    Há conhecimento desse objeto desde o 4º milénio antes do nascimento de Cristo, inicialmente feito em cerâmica, mais tarde em madeira e mesmo em plástico. Crê-se que, em tempos recuados, terá servido para adivinhação e outros fins similares, procurando ler nos seus movimentos respostas para questões existenciais ou transcendentes. É imensa a trajetória literária que o pião seguiu desde a Mesopotâmia, ao Egito, às civilizações grega e romana e, provavelmente outras, a Oriente e a Ocidente, – como diversas formas de conhecimento, também o pião terá passado das culturas orientais, principalmente da China e do Japão, para o Ocidente – e ao longo da História Ocidental. Na Antiga Grécia, para Platão o pião servia como metáfora do movimento e Aristófanes confessava-se adepto do objeto. Aparecem referências nos poemas de Ovídio; outro poeta latino, Aulus Persius Flaccus dizia que, na sua infância, teve mais afeição ao pião do que aos estudos; Virgílio menciona-o na Eneida por exemplo. Serviu de inspiração a poetas e prosadores nas literaturas nacionais modernas sem esquecer a chamada cultura popular onde persistem lengalengas versificadas como esta citada por Teófilo Braga no capítulo “Eras Novas” da obra de recolha “As Adivinhas Portuguesas” (p.254):

    Para andar lhe pus a capa

    E tirei-lha para andar

    Que ele sem capa não anda

    Nem com ela pode andar,

    Com capa não dança

    Sem capa não pode dançar,

    Para dançar se bota a capa

    Tira-se a capa para dançar.

    Como agora é costume dizer-se, o pião era transversal a todas as classes sociais e a todas as categorias ocupacionais ou profissionais. Se nem todos o sabiam jogar a preceito, ninguém escapava à fascinação que ele exercia ainda que mais não fosse do que um bibelô no imensurável compartimento que é a memória de cada ser humano. Já antes referi a ampla utilização que, pelos tempos afora, recebeu para fins materiais e espirituais. Ficou bem conhecido um texto escrito por D. Jorge, arcebispo de Braga, irmão bastardo do nosso rei D.João V, em que o pião é utilizado numa alegoria moralista:

    «O pião, no qual se simboliza o ímpio e vingativo, é fabricado do coração do pau mais duro. Arma-se com ferro agudo enquanto o cingem; cingido com o cordel parece um penitente; com o ferrão para cima mostra que se acautela de molestar com ele. Porém, tanto que o poder de algum braço lhe dá corda e impulso, vai como um raio, volta o ferro para terra, racha, fere e lastima, ficando tão satisfeito que, em giros, anda campeando; até que, nesta felicidade dormindo e ressonando, serenissimamente acaba a vida que, animada do impulso, lhe durava. Deste jogo, que é de Meninos, podem aprender os homens, especialmente sendo Príncipes, a não darem o seu poder para vinganças sem ofensas».

    As considerações que lhes deixo, caros leitores, não resultam de minha experiência enquanto praticante. Joguei o pião, tal como os meus companheiros de infância, mas nunca fui bom nesse desporto (?) como em nenhum outro. Aprecio todos os desportos como espetador, assisto a competições de qualquer que seja a modalidade. Tal como a maioria dos portugueses, gosto de ver jogos, sobretudo de futebol, mas desconheço o prazer que sentem os bons praticantes. O que motivou a presente incursão nesta área foi o tio Sitote que fabricava piões, aqueles objetos que usávamos nas brincadeiras da primavera – creio que a Quaresma era o tempo em que mais se usavam – e fusos onde as fiandeiras enrolavam o fio da lã ou do linho, este no tempo em que ainda se cultivava em nossas terras.

    Regressando ao início desta crónica, a oficina onde trabalhava o tio Sitote ficava a uma dezena de passos miudinhos desde o degrau fundeiro da escaleira da casa onde morava a minha tia Antoninha do outro lado do caminho. Era um espaço por baixo da casa onde morava com a senhora Engrácia e uma mão cheia de filhos e ali trabalhavam ambos, ele no torno, ela no tear. Ele fazia piões e fusos no torno, ela manobrava o tear donde saíam cobertores, colchas e mantas de farrapos, que eram os tapetes de luxo das moradas aldeãs. Nesse tempo, os piões eram vendidos nas tendas, em feiras e festas das redondezas. Tinha-os a tia Ana Aleixa no arsenal de quinquilharias que tentava vender em Bragança, na esquina onde terminava a Rua Almirante Reis em frente aos Correios, quando ela e o marido Álvaro Guindas descobriram que o negócio era mais rentável e menos custoso do que a lavoura das parcas leiras que tinham na aldeia onde criaram os filhos. Na Senhora da Serra, a concorrência era grande no espaço destinado ao comércio, embora os peregrinos raramente partissem sem comprar lembranças para as namoradas, filhos, sobrinhos ou afilhados. Antes de presenciar a arte do tio Sitote, nunca me tinha interrogado sobre a proveniência daqueles artefactos assim como certas crianças de hoje desconhecem que o leite que lhes servem e as mães compraram no hiper mais próximo é produzido pelas vacas.

    Atualmente já não se joga o pião, porque as crianças rareiam e vivemos o tempo dos jogos de máquina. Estão em vias de desaparecimento os passatempos em grupo, estamos em plena época do jogo solitário e das comunicações através das redes sociais com todos os inconvenientes que resultam para a socialização das crianças. Que consequências isso vai trazer às novas gerações? Também os fusos já tornaram peças de museu porque os trabalhos de fiar e de fazer meias, camisolas, luvas e outros artigos já ninguém os aprende, porque não compensa e as chamadas “prendas domésticas” perderam todo o seu valor.

    1 Bola de gude – Lê-se no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa que o termo gude teve origem minhota. Será proveniente de godé ou godo.

    Por: Nuno Afonso

     

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