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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-05-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    O monstro

    O dia arfava de cansaço e o sol poente deixava atrás de si um calor opressivo agora temperado por ligeira e acariciante brisa num convite a descontraída, amigável convivência.

    À medida que as sombras se alongavam, iam chegando à povoação os poucos lavradores que ainda insistiam em praticar a agricultura tradicional, baseada num esforçadíssimo trabalho físico; só um pouco mais tarde surgiam os boieiros, tangendo as crias com vagar ao som das campainhas, que os animais traziam penduradas ao cachaço, e de mugidos espaçados. Muitos habitantes antecipavam a hora da ceia e vinham, depois, para o centro da aldeia a gozar o fresco do início da noite e a discorrer sobre temas que, há umas décadas, eram desconhecidos ou menorizados, como futebol e política Sentavam-se nos muros ou nos degraus das escadas e bebericavam cervejas que iam comprar à taberna do tio Adriano, ali bem perto. Havia quem trouxesse rádios de pilhas que enchiam de ruído a pacatez do lugar onde os jovens, cujos antepassados cantavam e dançavam com alma modas tradicionais após esgotantes jornadas de trabalho, ouviam agora, em atitude passiva, palavras que não entendiam e ritmos provindos de um mundo que não era o seu.

    A década de 80 chegava ao fim, o país reerguera-se após o 2º acordo com o FMI (1983), assinara o Tratado de Adesão à Comunidade Económica Europeia, recebendo Fundos Estruturais destinados a estimular o desenvolvimento da nossa economia que o primeiro governo maioritário do atual Presidente da República tinha por missão aplicar com rigor e proficiência. Parecia ser ele a pessoa indicada para o efeito, dada a sua formação em Economia e Finanças tendo-se doutorado em Economia Pública pela Universidade de York, em Inglaterra, alguns anos antes. Fora ministro das Finanças de Sá Carneiro e diretor do Banco de Portugal antes de ser eleito presidente do seu partido e de ter liderado um governo minoritário.

    A atividade docente recomendava-nos umas férias tranquilas. Alimonde correspondia inteiramente ao perfil desejado para um merecido repouso. Passeávamos pelo campo salpicado de boninas; subíamos aos pontos mais elevados e concedíamos repouso ao espírito, lisonjeando-o com aquela paisagem, ao mesmo tempo, doce e agreste, única e variada, em diversos tons de verde, dourada pelo sol sob o azul mais puro do céu; descíamos à bucólica ermida de Santo Amaro por centenários caminhos em que ainda circulavam carros de bois, chiando sob o carrego de molhos de cereal a caminho das eiras, ou declivávamos para o rio, passando junto aos velhos moinhos – um dos quais ainda em funcionamento – e eu relembrava os tempos de criança quando acompanhava o meu pai naquelas noites gélidas de Inverno a verificar se a moenda decorria nas melhores condições e como, ao adentrar a construção em boa pedra de xisto, julgava estar no paraíso tal a diferença de temperatura que ali se fazia sentir; ao fim do dia, terminada a ceia, dirigíamo-nos para a casa do tio Adriano, por cima do estabelecimento, e sentávamo-nos na varanda com vista para o largo d’à Bica onde confluíam todos os caminhos, na companhia desses nossos antigos caseiros e sempre amigos. E, logo na primeira noite, a Sância saiu-se com a novidade:

    – Ó compadre, as pessoas de cá ‘stão mim ricas!

    – Ah sim? Porquê? Descobriram que havia ouro nas minas de Vale de Pinguela? – inquiri em tom de brincadeira mas curioso pela novidade.

    – Não, num ‘stou a brincar. O governo anda a dar dinheiro por os animais que queda um tem. Chamerum--nos a Bregança e manderum-nos ‘screver um manifesto 1 das vacas, vitelos, burros ou outros animais de trabalho. Ó depois, chamerum--nos de nóvo p’ra dar por queda animal vinte contos por os que trabalham e dez por os vitelos ou burricos. Algumas pessoas que tinham munta cria receberam mais dinheiro ca pouco.2 Ó tio Zé Bernardo deram-le p’raí duzentos contos. Tu sabes que ele teve sempre munta cria, seca c’m’ás palhas mas tinha proa 3 nisso. Num te lembras qu’ele dezia qu’era o home mais rico da aldeia?

    – Pois dizia! E o que é que as pessoas têm que fazer? Não se dá dinheiro assim sem mais nem menos.

    – Ninguém les pediu nada. Fiquerum com o dinheiro e pronto.

    – Há de haver aí algum mal entendido. Se calhar, explicaram-lhes, mas eles não compreenderam. Eu penso que o governo deve ter entregado esse dinheiro para que os donos dos animais procurassem aumentar o número de cabeças com novas criações, ou, se calhar, na ilusão de que, dessa forma, os mais novos deixavam de emigrar. O povo diz que “ninguém dá nada a ninguém”, não te parece?

    – A mim pareceu-me esquisito mas eis juram que não têm que fazer nada. Veremos.

    Não procurei saber como terminou esta história mas parece-me exemplar quanto à maneira pouco rigorosa como os fundos comunitários foram aplicados desde 1986. Muito se falou, ao longo de vários anos, no mau uso do dinheiro que o país recebeu para aproximar a débil e mal estruturada economia portuguesa às de outros países mais desenvolvidos da CEE. Quem não se recorda da maneira como foram entregues a certas instituições públicas e privadas somas avultadas para formação profissional ou como foram atribuídas a algumas empresas verbas para, supostamente, manter ou aumentar postos de trabalho? A imprensa falou até de um governante que deu subsídios a empresas já falidas para manterem empregos. Tanto dinheiro ofuscou a lucidez dos sucessivos governos que deveriam ter investido, prioritariamente, na educação das novas gerações como fez, por exemplo a Irlanda que tem, atualmente, uma juventude instruída e dinâmica apta a ultrapassar a crise que também atingiu aquele país por motivos diferentes dos nossos. Em Portugal fizeram-se progressos no domínio da educação ao longo da última década, contudo a mão de obra é ainda pouco qualificada, o que antecipa o receio de respondermos mal aos compromissos há pouco assumidos com os responsáveis do FMI (Fundo Monetário Internacional), do BCE (Banco Central Europeu) e da CE (Comissão Europeia). O ensino obrigatório até à conclusão do secundário (12º Ano) está por cumprir. A estatística diz--nos que «somente 28% da população portuguesa entre os 25 e os 64 anos completou o ensino secundário» enquanto, na Alemanha, o valor é de 85%, na República Checa sobe a 91% e atinge 89% nos Estados Unidos. Em Portugal, o abandono escolar é o terceiro maior de todos os países da OCDE (37,1%) só abaixo da Turquia e do México. A Alemanha regista apenas 2,8% nesta rubrica. O desemprego, em Portugal, anda pelos 12% da população ativa. Pior do que as dificuldades económicas que nos foram impostas é o receio de não termos capacidade para “dar a volta por cima”. Para agravar ainda mais a situação, estamos envolvidos numa crise política muito complicada. Em plena campanha para as eleições do próximo dia 5 de junho, os líderes partidários revelam-se, confrangedoramente, incapazes de responder aos enormes desafios que temos de enfrentar. Recuso-me a aceitar que cada povo tenha os políticos que merece.

    Nessa noite estival há mais de trinta anos, percorremos as dezenas de metros que nos separavam de casa quando o largo já se despovoara, as pessoas buscavam o aconchego dos lares e o repouso merecido. Nos currais e nas capoeiras os bichos domésticos respeitavam os hábitos dos humanos. Pelo caminho fomos brindados com um concerto em que se distinguiam os sons modulados dos grilos que tocavam flautim, o fagote dos sapos e o recorreco de uma cigarra insone.

    1 manifesto – inventário de ativos;

    2 mais dinheiro ca pouco – grande quantia em dinheiro;

    3 vaidade.

    Obs: - Os dados estatísticos foram recolhidos no “Courrier International”, incluídos num trabalho publicado no “The Wall Street Journal” de Nova Iorque com o título “Uma nação de alunos desistentes abala a Europa” e um subtítulo “Portugal vai ter dificuldade em pagar as dívidas porque vai gerar pouca riqueza nos próximos anos. Causa: fraca escolaridade e mão de obra pouco qualificada”.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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