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    Arquivo: Edição de 15-03-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    “Num sonho todo feito de incerteza…”

    Nos brevíssimos intervalos que a actividade docente consentia, a meio da manhã ou da tarde, quase não havia tempo para uma conversa que escapasse às fatigadas lamentações acerca dos alunos, da sua consabida indisciplina, má educação e desinteresse pela aprendizagem. Aproveitava-se o encontro com os directores de turma e cristalizavam-se, em palavras medidas, as frustrações, o desencanto e a fracção de amor-próprio magoado que tais procedimentos causavam. De longe em longe, havia manhãs ou tardes em que se programavam actividades desportivas ou lúdicas para as quais a presença dos professores não era requerida em permanência, excelentes oportunidades para discorrer acerca de matérias da actualidade ou de cultura geral.

    Os contactos entre professores eram, em geral, ténues, limitavam-se a conversas de circunstância nos escassos momentos de convívio na sala dos professores e entre reuniões previstas nos regulamentos. Daí que o Zé Luís afirmasse com toda a convicção:

    – Entre professores não há amigos!

    – Não diga isso – retorqui –, acho que é uma afirmação radical. Talvez não possamos chamar amizade no sentido comum ao nosso relacionamento mas, se tivermos em consideração a fluidez da vida contemporânea – famílias desenraizadas e transplantadas dos seus lugares de origem para outro onde encontram vizinhos em idêntica situação, que saúdam ao passar e de quem nada conhecem, em que o café arremeda os lares para os quais as pessoas mutuamente se convidavam e a afectividade tinha sólidas maneiras de se afirmar, alicerçada em laços de parentesco, objectivos comuns e sentimento de pertença, – temos de convir que partilhamos um vasto espaço psicológico onde florescem afectos e medram emoções.

    O Zé Luís era homem de personalidade forte, fundamentava as suas tomadas de posição e não desistia delas por oportunismo, conveniência pessoal ou para evitar aborrecimentos. Uma pessoa desta têmpera é incómoda para os instalados, frequentemente incompreendida, hostilizada, alvo de malquerença. Neste caso, talvez ele tomasse a árvore pela floresta e receasse ver-se confrontado com mais decepções.

    Do mobiliário que preenchia a sala dos professores faziam parte alguns sofás em que certos professores costumavam instalar-se para trocar dois dedos de conversa. Dispostos em rectângulo, permitiam uma espécie de tête-à tête aconchegado e aberto à partilha. Todas as manhãs, antes do primeiro toque da campainha, ali se juntavam em ameno bate-papo, divertindo-se com o humor da Helena Leote cheio de espírito e graça cujo alvo era, frequentemente, ela própria, o confronto de pontos de vista entre o Mascarenhas, o Zé Luís, o Assis e o autor destas linhas, as informações que traziam a Maria da Luz, a Ana Cabral e ainda outros de vez em quando e que davam azo a comentários diversos. A nossa camaradagem trazia incómodo a certos arrivistas que desconfiavam do nosso alinhamento, no seu entender, molesto para os seus propósitos. Chamavam-nos, depreciativamente, “o grupo do sofá”. Éramos tão incómodos que, em certa ocasião, resolveram dar novo figurino à sala, justificado com o melhor aproveitamento do espaço. De nada valeu porque, logo que nos apercebemos da mudança, repusemos os móveis tal como estavam. O Conselho Executivo entendeu que melhor seria não insistir.

    Um dia, falava-se de sonhos e o Jorge Marques contou que, apesar de ser matéria amplamente expendida na História, na Literatura, na Religião e nas tradições populares, nunca lhes atribuiu grande importância. Duvidava de certas narrativas que os amigos diziam ter sonhado enquanto ele não conseguia lembrar-se, a cada manhã, do que sonhara durante a noite, quando muito recordava cenas descontextualizadas. Instigado pelo estudo do Surrealismo que elegia a escrita automática como a mais autêntica manifestação do subconsciente humano, decidiu consultar um ilustre psiquiatra para saber se padecia de alguma deficiência mental ou que a ela conduzisse. Começou por dizer ao clínico que não sonhava, dando-lhe conta das suas preocupações.

    – O sonho resulta da actividade constante do cérebro humano, estejamos acordados ou a dormir – elucidou o médico –, todos nós sonhamos e, para o constatar, bastaria que o senhor dormisse ligado a um electroencefalógrafo.Os impulsos, registados numa folha de papel, demonstrar-lhe-iam que, durante toda a noite, o senhor tinha sonhado. Se me diz que raramente se lembra dos seus sonhos, responder-lhe-ei que, por qualquer razão, o senhor exerce uma espécie de censura à sua memória. Talvez algo na sua vida lhe tenha causado um trauma profundo e desencadeou esse processo.

    – É possível descobrir a origem desse problema? – perguntou, após tão surpreendente revelação.

    – Talvez sim, talvez não. Seria preciso que se dispusesse a revisitar todo o seu passado desde que tem lembrança ou de que tivesse ouvido falar aos seus pais. Seria um processo muito moroso e que talvez não conduzisse à verdadeira origem daquilo a que chamou problema, porque há situações e factos que podem ter-se apagado. Só descobrindo a causa é que se torna viável o tratamento. Há uma história muito conhecida acerca duma senhora que sofria de um distúrbio psíquico e que aceitou submeter-se ao procedimento que lhe indiquei. Depois de muitas conversas com o meu colega que a acompanhou, e num momento em que julgava nada mais existir de relevante no seu passado, deu-lhe conta de uma situação que entendeu ser mero pormenor sem nenhum valor. Referia-se a uma viagem de comboio em companhia dos pais, na sua primeira infância. Viajava sentada no colo da mãe. Fazia muito calor dentro da cabine e o pai levantou a janela para refrescar o compartimento. A criança sentia-se confortável e feliz. Foi então que o revisor chegou e fechou a janela com estrondo ao mesmo tempo que repreendia o pai com severidade por infringir a norma inscrita ao lado do vidro. A menina chorou longamente até que, por fim, cedeu a um sono muito agitado intercalado de suspiros. O pai falava amiúde desse caso, mas ela quase o esquecera.

    Quanto a mim, também esqueci o que julgava um problema e passo muito bem assim. – terminou o Jorge.

    Foi a vez do João Mendes intervir:

    – Deixemos, por agora, os sonhos. Proponho que tentem encontrar uma relação lógica entre estes elementos: tangerina, maçã (de Adão) um copo com água, um homem pendurado nos fios eléctricos e um grupo de mulheres de mãos erguidas em atitude de aflição, de entusiasmo ou de prece.

    Cada um dos presentes reflectiu durante breves minutos e as respostas foram surgindo. Houve quem relacionasse esses dados com uma receita culinária, outra com mezinha de bruxaria, uma terceira apontava para um quadro surrealista que mostrasse o aparente caos do subconsciente humano sem qualquer imposição da sequência lógica que habitualmente apresentamos no fluxo discursivo, alguém tentou encontrar um fio condutor que desse maior ou menor credibilidade a uma narrativa dramática. As propostas deram lugar a boas gargalhadas e a intervenções humorísticas dos ouvintes, a apartes e a correcções. Logo que o fluxo criativo amainou, Paulo Gomes justificou a proposta com uma história que ouvira em criança:

    – A tia Cremilde morava na vila, nome pelo qual era conhecido o aglomerado populacional no interior das muralhas da cidade. Eram casas humildes de gente pobre que trabalhava em artes e no cultivo das quintas que bordejavam a urbe. Casada com o Gaiolas, já quase perdera a esperança de ter filhos quando se deu conta de que estava grávida. Menino ou menina, tanto se lhe dava, para ela o importante era ser mãe. O Gaiolas, como ditava a tradição, preferia um rapaz e Deus, a quem muito suplicara, fez-lhe a vontade.

    O menino era rechonchudo, de carinha redonda e corada pelo que mereceu, de pronto, o apelido de Tangerina que havia de acompanhá-lo para o resto da vida. As mulheres, que se revezavam a pegar no bebé e a fazer-lhe festas, estavam longe de imaginar as transformações que sofreria ao longo dos anos. Já adolescente, cresceu e adelgaçou e, ao atingir a maioridade, parecia “um pau de virar tripas”, pernas curta e pescoço alto de que se destacava uma maçã de Adão que subia e descia, subia e descia, conferindo-lhe um aspecto cómico que atraía as chufas dos miúdos e dos mais crescidos. Aprendeu o ofício de electricista e concorreu a uma vaga na secção técnica da Câmara Municipal.

    Um dia, chamaram-no para resolver uma avaria numa das ruas próximas do rio. Tão desastradamente actuou que, a meio do serviço, desequilibrou-se e ficou pendurado nos fios eléctricos a uma altura considerável da rua. Aflito, pôs-se a gritar desalmadamente por socorro. Acudiram umas quantas mulheres a clamar pelo auxílio divino: “oh valha-me Deus! Oh valha-me Deus!”, até que uma delas, mais lúcida, foi buscar uma manta, a que outras mulheres se agarraram, correndo todas na direcção do Tangerina. Este, na sua aflição, não se apercebeu e vá de deslizar de um lado ao outro da rua a gritar e a espernear enquanto as mulheres tentavam acompanhá-lo. De nada lhe valeu porque perdeu a mão quando as mulheres vinham a correr do lado oposto, estatelando-se no meio do empedrado da rua, felizmente sem consequências sérias.

    Por: Nuno Afonso

     

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