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    Arquivo: Edição de 30-12-2010

    SECÇÃO: Crónicas


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    Heróis, santos ou apenas humanos

    Um exemplo vale mais do que mil palavras. Não seria o que sou hoje sem os exemplos que recebi dos meus pais, em primeiro lugar, e de todos os que comigo privaram pelo que aprendi com as suas acções positivas ou negativas. Sim, porque os exemplos negativos podem ser também muito úteis no nosso percurso de vida. O processo de socialização do indivíduo depende, em larga medida, do que vê fazer aos que lhe estão mais próximos. Os exemplos são convertidos em palavras que podem não ser pronunciadas mas que ficam disponíveis no repertório linguístico de cada ser humano para serem actualizadas em qualquer situação. Com frequência, os exemplos são acompanhados de palavras, todavia e ao contrário das situações rotineiras em que outra linguagens, sobretudo a gestual, complementam o discurso oral, nos quadros que povoam as nossas lembranças, as palavras é que são auxiliares das atitudes.

    Fixaram-se na memória colectiva expressões associadas a certas figuras de grande relevância política, científica, artística ou outra, comummente conhecidas por “frases lapidares”. Elas contribuíram, decisivamente, para imortalizar tais pessoas como símbolos do bem ou do mal, de inteligência, de firmeza, de sentido de humor…Se algumas dessas frases são incontestavelmente autênticas, a maioria pode não passar de uma criativa e oportuna maneira de caracterizar a personagem em causa, consoante a admiração ou a repulsa que mereceu dos seus contemporâneos, sentimento que se deseja inculcar no espírito dos vindouros. Quem não se lembra da célebre frase atribuída a D.ª Luísa de Gusmão para incentivar o reticente marido, D. João Duque de Bragança, a liderar o movimento da restauração em 1640: «Mais vale ser Rainha uma hora do que Duquesa toda a vida!»? D. João VI, intimado pelas Cortes a regressar do Brasil, após a Revolução de 1820, ter-se-á dirigido ao filho D. Pedro, futuro Imperador do Brasil que deixou a governar aquele território em seu lugar, nos seguintes termos: «Se o Brasil tiver que se separar de Portugal, ao menos que seja para ti que me hás-de respeitar…». O mesmo D. Pedro, logo ao início da sua regência, teve que enfrentar o forte anseio de independência daquele território ao mesmo tempo que, em Portugal, as Cortes exigiam o seu regresso a Lisboa. Os brasileiros, órfãos de uma liderança própria capaz de enfrentar com êxito a Metrópole, viam nele a solução ideal e assediaram-no com pedidos, abaixo-assinados, discursos e manifestos nos jornais sobretudo do Rio de Janeiro culminando com o envio de uma representação portadora de um abaixo--assinado com 8 000 assinaturas – o Rio de Janeiro, nessa época, tinha 120 000 habitantes – pedindo--lhe que ficasse no Brasil e os conduzisse à independência. Ao receber o documento das mãos do Presidente do Senado da Câmara, José Clemente Pereira, D. Pedro anunciou a decisão favorável ao que lhe era solicitado, contrariando as Cortes de Lisboa. Esta cena teve lugar no dia 9 de Janeiro de 1822, oito meses antes do famoso Grito do Ipiranga. Esta data ficou conhecida como o “Dia do Fico”. As palavras que, então, terá pronunciado ficaram registadas nos autos da vereação e no edital, publicados nesse mesmo dia e o seu teor era diferente, na forma e na substância, daquela que surgiu noutro edital publicado no dia seguinte. Foi esta última que os brasileiros memorizaram e rezava assim: «Como é para bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto: diga ao povo que fico». O exemplo corajoso de D. Pedro foi muito mais significativo do que as palavras ditas, qualquer que fosse a versão, e o seu exemplo foi determinante no seguimento do processo que faria do Brasil uma nação independente. Miguel Ângelo, um dos maiores representantes do Humanismo, ao terminar a estátua de Moisés, que deveria figurar no monumental mausoléu do Papa Júlio II, dominado por um enorme entusiasmo criador, semelhante ao que Deus terá experimentado ao criar o Homem, terá exclamado «Parla!», vibrando-lhe uma pancada com o cinzel de que resultou um pequeno corte que achou por bem não corrigir e que, ainda hoje, recorda esse momento empolgante.

    Como acima referi, os exemplos podem ser positivos ou negativos revelando a complexidade dos seres humanos. Os caracteres mais bem formados apresentam, por vezes, zonas de penumbra e mesmo de espessas trevas, assim como os que se nos revelam capazes dos actos mais nefandos podem deixar-se enternecer por um sorriso de criança ou por um daqueles milagres de que a natureza é pródiga. Os carrascos nazis talvez tenham sido pais extremosos e maridos exemplares e é sabido que alguns possuíam grande sensibilidade artística e comoção face a determinados dramas humanos e, não obstante, colaboraram no extermínio de milhões de judeus, ciganos e outras minorias étnicas. Fomos ensinados a condenar todos os que professavam ideologias nazi-fascistas e a glorificar os grandes heróis aliados como se, quer uns quer outros fossem figuras planas. E, no entanto, alguns dos que julgávamos imaculados praticaram acções tão vis que teriam envergonhado os seus contemporâneos se fossem do conhecimento geral. A revista “Visão” n.º 926 traduz um artigo da “Time Magazine” acerca de Winston Churchill, considerado um dos maiores e mais prestigiados estadistas do século XX que, à frente do governo inglês desde 10 de Maio de 1940, resistiu aos ataques alemães no Reino Unido e em todas as partes do Império Britânico. Três dias depois de empossado, pronunciou a frase que passou à posteridade: «Não posso prometer-vos senão sangue, suor e lágrimas». Recentemente, Madhusree Mukerjee, escritor e deputado indiano, publicou o livro “A Guerra Secreta de Churchill” onde põe a nu o lado tenebroso do seu carácter e da sua actuação enquanto governante. Nele declara que «em 1943, cerca de 3 milhões de súbditos do Rajá de pele escura morreram na crise da fome de Bengala, uma das piores da História». Baseado em documentos e relatos orais dos sobreviventes, revela que ele «ordenou o desvio de alimentos dos indianos esfomeados para os soldados na Grã-Bretanha e noutras partes da Europa, incluindo a Grécia e a Jugoslávia». Nessa ocasião, terá dito ao Secretário de Estado para a Índia Leopold Amery: «São um povo bruto, com uma religião bruta». A fome seria culpa dos próprios indianos «por se reproduzirem como coelhos». Churchill não só desviou algum do cereal da Índia como recusou as ofertas de ajuda alimentar dos americanos e canadianos. «A Índia não foi autorizada a usar as suas próprias reservas em libras nem os seus navios, para importar alimentos». Lord Wavell, nomeado vice-rei da Índia nesse ano de 1943 considerou a atitude de Churchill «negligente, hostil e desdenhosa». No entanto, o homem do charuto escreveu muito e «os volumes auto-elogiosos mas elegantes que escreveu sobre a guerra levaram o Comité Nobel da Literatura, incapaz de lhe atribuir um prémio pela Paz, a dar-lhe o Prémio Nobel da Literatura».

    Todo o ser humano tem histórias que ajudaram a construir o seu carácter. Recordo aqui uma das que contribuíram para a minha formação. Na aldeia, todos eram chamados a colaborar na economia familiar, na medida das suas possibilidades. “Nesta terra, meu home, quem não trabalha não come” – dizia o provérbio local. Naturalmente, às crianças eram entregues trabalhos mais leves, adequados à sua idade. Eu deveria “botar a cria” sempre que os animais não estivessem a puxar ao carro ou à charrua e houvesse vitelos ou burra no curral. Eu deveria ter 9 ou 10 anos e era um domingo de Verão, o que implicava a obrigatoriedade de tanger os animais para o lameiro e tomar conta não fossem eles invadir propriedade alheia. De manhã, assistia-se à Missa mas, se esta fosse celebrada um pouco mais tarde, os boieiros saíam cedo e regressavam quando, do campanário, descia o som das badaladas a dar conhecimento de que o senhor padre já tinha chegado e a Missa não demoraria muito a ter início. Devido ao calor da época, os animais só voltariam a sair depois do esturreiro do princípio da tarde. Nessa altura, era grande o bulício, pequenos e grandes saíam de casa, uns para brincar, outros para jogar ou sentar-se ao fresco a conversar. Tínhamos, na ocasião, um criado, o Janeta, rapaz da terra, valente e que gostava de se divertir. Como ao domingo não se faziam trabalhos no campo, divertia-se a jogar o fito, a presenciar “o jogo dos paus” ou a beber o seu copo numa das tabernas da aldeia. Nesse dia, já as crianças ou as mulheres iam a caminho dos lameiros e a nossa cria continuava no curral porque eu andava na brincadeira com os outros garotos. Calhou de passar o Janeta que me perguntou quando é que eu ia “botar a cria”, que já passava da hora.

    – Bota-a tu que é para isso que te pagam – respondi instantaneamente, sem atentar no que dizia.

    O Janeta não respondeu mas ficou melindrado e arrepiou caminho, julgo eu, para fazer queixa ao meu pai. Não dei tempo que ele me viesse ralhar, tratei de abrir a porta do curral e, o mais rápido que foi possível, lá segui atrás dos animais em direcção ao lameiro da Veiga. À hora da ceia, o meu pai repreendeu--me e lembrou que o criado tinha outras atribuições e que eu devia saber que aquele era “o meu trabalho”. Como ao domingo não se trabalhava, ele tinha o direito de descansar ou de ocupar o tempo no que ele entendesse. Além do mais, eu tinha sido mal--educado e exigiu que pedisse desculpa ao Janeta pela minha atitude grosseira.

    Por: Nuno Afonso

     

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