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    Arquivo: Edição de 20-12-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    Natais de boa memória

    Em nossa memória ecoam as lembranças de muitos Natais passados. No que me diz respeito, já foram muitos. Neste indefinido cabem muitos outros indefinidos (nenhum, poucos, alguns, bastantes) consoante os grupos etários, como se fossem caixas chinesas: para as crianças, cujo poder de abstracção é reduzido, também as recordações têm um significado diminuto, porque tudo se resume ao desejo de receber prendas e à fugaz satisfação que lhes proporcionam depois de as terem consigo, fenómeno que acontece em todos os natais e em que nenhum sobreleva os demais; os adolescentes emocionam-se mas de forma indistinta, frequentemente contraditória, como tendem a ser todas as suas emoções, de que uma ou outra pode romper a couraça, que eles foram criando em torno de si próprios, por uma circunstância caprichosa, alguém que chega inesperadamente, um facto curioso ou invulgar, geralmente, poucos merecem indelével destaque; os jovens, pela sua irrequietude, pela sede de infinito que revelam, pela probabilidade de criarem, eles próprios, situações dignas de realce, é quase certo que guardarão algumas imperecíveis recordações; os adultos, porque actuam sobre a realidade e esta é tão vária e insuspeita, com toda a certeza, terão bastantes histórias desta época para contar aos netos, nimbadas de magia em que o passado as foi envolvendo.

    Via de regra, à medida que se vão abrindo as caixas, que contêm outras menores, depara-se com o vazio e há-de ser na última, na mais pequena, que encontraremos a verdadeira e valiosa prenda, a surpresa que ficará na memória para todo o sempre. Quantas vezes é nos longes da infância, nessa caixa diminuta, qual ostra dos mares orientais, que ficou guardada a pérola rara que, mais tarde, contemplamos embevecidos.

    Sophia de Mello Breyner falava dos natais de tempos longínquos na distante Dinamarca dos seus ancestrais paternos, sempre iguais mas sempre comoventes e impressivos. Assim eram os doces natais da nossa infância nas terras frias do nordeste, provavelmente em todo o norte do país, desde a profunda limpeza das casas como símbolo da renovação interior aos preparativos da Ceia, tudo envolto numa intensa alegria que os mais pequenos viviam de maneira muito especial, numa embriaguês do espírito deveras exaltante, e que às mulheres punha asas nos pés e um acréscimo de desenvoltura mental e física digna de prestidigitador, acorrendo da horta à lareira, do lançador (espécie de banca de cozinha) aos potes onde coziam as variedades culinárias próprias da época, ditavam ordens aos pequenos, mandavam-nos aqui e ali a aviar o necessário para que tudo estivesse pronto sem tardança, eles próprios despertavam a atenção das mães chorando, acusando, ameaçando outros e era, então, necessário intervir para indagar, resolver, ralhar ou castigar consoante os casos, distribuíam tarefas às filhas que ajudavam na cozinha, não podiam esquecer os animais que requeriam, em grunhidos e cacarejos, alimentação urgente. Numa época em que não havia relógios, o tempo era calculado pela experiência ganha em anos sucessivos de obediência aos ditames da tradição.

    A par das obrigações, vinham as devoções, o cuidado pelos menos favorecidos a quem mandavam entregar um pouco do seu conforto alimentar e da sua alegria espiritual. Não podiam esquecer os pequenos agrados às vizinhas e amigas pela simpatia demonstrada e pela reciprocidade nessas demonstrações de afecto e bom-viver.

    Depois havia que lavar e vestir as crianças para a Missa do Galo e as próprias donas de casa, marido e filhos mais crescidos iam buscar as roupas domingueiras previamente cuidadas pela abelha-mestra.

    Na Igreja, mais iluminada do que habitualmente, assistia-se à solene Missa do Galo assim chamada porque tinha início cerca da meia-noite, hora a que o francês costuma entoar o seu primeiro canto. Os enfeites, as luzes e as vozes, de que se destacavam os tons agudos das mulheres, deliciavam a miudagem que até se esquecia das traquinices do costume. Os cânticos de Natal, que apenas na Igreja eram ouvidos, contribuíam para o êxtase dos mais novos.

    Talvez o número mais importante fosse o regresso a casa e ao conforto da lareira. As geadas, que endureciam os caminhos e enregelavam os corpos mal agasalhados, ficavam lá fora. Avivava-se a lareira, as mães preparavam o chocolate quente que era servido com as rabanadas e as filhós de sempre e constituíam o culminar da festa. Os presentes seriam distribuídos pelo Menino Jesus durante a noite. Na manhã seguinte, Dia de Natal, os mais novos corriam descalços em direcção à lareira onde tinham deixado os sapatos e seguiam, esfusiantes, a mostrá-los aos pais. Esta parte era exclusiva de um restrito número de famílias e não tinha senão valor simbólico, assim, não havia motivo de invejas e de brigas entre contemplados e esquecidos. Quando muito, ao verem a tabletezinha de chocolate na mão de um privilegiado, o que nada tinha recebido fazia um gesto de desprezo e atirava:

    - Eu também já comi chocolates, ah!

    Ainda que todos os natais da nossa infância tivessem o mesmo figurino, despertavam, a cada ano, renovado entusiasmo e diferente emoção. Entre a descrição e o sentimento há uma enorme distância.

    Pela vida fora, cada um terá lembrança de uma dessas festas especialmente marcantes. Eu tive alguns que relembro positiva ou negativamente consoante os acontecimentos alegres ou tristes que os acompanharam. Deles fiz crónicas em épocas diversas. Porém, dos natais da minha meninice é que guardo as mais gratas memórias.

    Por: Nuno Afonso

     

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