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    Arquivo: Edição de 30-06-2009

    SECÇÃO: Crónicas


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    Os maus rapazes

    Ainda me lembro do tio Loutero. Nunca vi a sua cédula pessoal ou o Bilhete de Identidade, se alguma vez o possuiu, portanto não posso afirmar, embora tenha a convicção, que se chamava Eleutério, porque não parecia compreensível que fosse Lutero, que a Igreja Católica execrava. Quem lhe escolheu o nome não teve em conta a lei do menor esforço e a tendência natural das gentes da aldeia em afeiçoar as palavras difíceis ao próprio linguajar. Quando o conheci, era um homem na casa dos cinquenta anos, casado e pai de seis filhos, caso não me tenha enganado na contagem. Vida muito difícil: recursos minguados e dois filhos com deficiência mental acentuada que constituíam peso acrescido, numa época em que tais problemas de saúde eram entendidos como castigo divino e também não havia instituições a que os pais pudessem recorrer para os ajudar.

    O tio Loutero ia tocando a vida como Deus era servido, cultivando os chãozitos que tinham cabido em herança a si e à sua mulher, de enxada ou ganchas na mão, valendo-se da caça ao coelho, à lebre e à perdiz, convertidos nos cobres indispensáveis para vestir e calçar todo o pessoal lá de casa, com tecidos baratos e os tamancos do costume. Como acontecia em muitas outras famílias da aldeia, comiam batatas com batatas, ao jantar e à ceia, ressalvando os dias nomeados e uma que outra data especial a justificar o recurso à carne do porco ou da pita velha para tornar as refeições mais apetecíveis. Existência sofrida, é certo, em tempos que ofereciam reduzida escolha, nem lhe assistindo a ousadia de buscar na estranja o que a própria sociedade lhes negava.

    Do tio Loutero contavam-se histórias havidas na juventude que não o dignificavam muito. Nas escaramuças entre rapazes era dos que gostavam de alimentar a fogueira mas se escapuliam quando as labaredas ameaçavam chamuscar quem estivesse à volta. Nesse tempo, era nos trabalhos mais pesados que os rapazes demonstravam a sua valentia e coragem, capazes de impressionar as moças que neles participavam, mormente aquelas que os tocavam mais profundamente. Ora, sucedia que as mais donairosas costumavam ser objecto das atenções de vários jovens e era nos trabalhos do campo, sobretudo nas eiras, que as virtudes masculinas despertavam mais as atenções.

    Os meses de Julho e Agosto culminavam as tarefas desenvolvidas ao longo de todo o ano com as segadas pelas leiras da serra e as malhas nas eiras dentro das povoações. E, se nas primeiras, os papéis a interpretar eram praticamente os mesmos para ambos os sexos, nas segundas havia nítida separação, sendo reservados os trabalhos que mais músculo exigiam para os homens, enquanto às mulheres cabiam os menos esforçados. Alguém cortava as vincelhas que atavam os molhos de centeio e elas espalhavam as espigas em duas fiadas ao longo da eira. Depois, era a vez dos rapazes empunharem os seus malhos (ou manguais) e levarem--nos a bater contra as espigas de modo a fazerem saltar o grão. Distribuíam-se em dois grupos, de frente um para o outro, em posição de desafio. Batiam alternados, compassadamente, esforçando-se cada qual por estourar o mais possível, de maneira a sobrepujar o estrondo produzido pelos “adversários”. Abro aqui um parêntesis para explicar em que consistia o malho, instrumento característico desta tarefa agrícola: havia um cabo em madeira, sensivelmente da altura de um homem, ligado por tiras de cabedal a um pírtigo, pedaço de madeira mais curto (mais ou menos, trinta e cinco centímetros) que, impulsionado pela força imprimida ao cabo maior, caía sobre as espigas, produzindo um ruído audível a muitas centenas de metros.

    Cada malhador esforçava-se por mostrar, no batimento do pírtigo, a sua força física superior à dos concorrentes e, desta forma, captar a admiração da sua eleita. Se adregava de alinhar na competição outro mancebo com idênticas intenções, a tão popular adrenalina subia a valores exagerados, exacerbavam-se os nervos e ficavam criadas as condições para uma violenta explosão. Eram, pois, muito frequentes os desentenÇdimentos entre malhadores, troca de palavras azedas, injúrias e agressões. Foi num desses entreveros que, travando-se de razões com o Carlos do Cerdeira, tipo bem apessoado e benquisto pela mocidade da aldeia, por mor da Teresa d’à Requeixada, depois de insultos e ameaças pouco veladas a que o visado entendeu não ripostar, desafiou-o e, sacando de uma navalha, tentou atingi-lo. O visado teve reflexos apurados, esquivando-se ao golpe e usando os punhos para o colocar em respeito. O Eleutério levantou-se, largou em corrida desabalada, perseguido por todos os rapazes presentes, saltou o muro que dava para o caminho público e não mais parou até encontrar-se no sardoal, escondendo-se numa gruta de difícil acesso. Alguns ainda correram no seu encalço, mas logo regressaram à eira para dar continuidade ao trabalho. O Eleutério ficou por lá até que a noite e o cansaço dos outros jovens lhe garantiram que poderia regressar sem risco. Por via das dúvidas, ficou em casa mais dois ou três dias, não fosse o diabo tecê-las.

    Por: Nuno Afonso

     

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