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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 31-05-2009

    SECÇÃO: Cultura


    ÁGORARTE PROMOVEU A SUA 3ª CONFERÊNCIA

    Aníbal Pinto de Castro falou sobre a “actualidade da novela de Camilo na estética e na Língua Portuguesa”

    Foi grande a expectativa que rodeou a realização da 3ª Conferência promovida pela Ágorarte no Fórum Cultural de Ermesinde no passado dia 22 de Maio e que atraiu àquele auditório uma considerável e interessada presença de público. O reconhecido prestígio dos oradores convidados, a especificidade do tema central e a sua ligação, previsivelmente implícita, na actual e polémica questão do Novo Acordo Ortográfico faziam adivinhar o sucesso que viria a confirmar-se.

    Aníbal Pinto de Castro, Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, ensaísta e crítico literário, Maria do Carmo Castelo Branco Vilaça de Sequeira, Professora Catedrática e Directora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa e por último o também Professor Catedrático Artur Villares, Director do Departamento de Comunicação do Instituto Superior de Línguas e Administração de Gaia falaram sobre a actualidade da novela de Camilo na estética e na Língua Portuguesa e ainda das memórias do escritor e da sua faceta de jornalista quase compulsivo.

    MATRIZES DO BARROCO

    A iniciar o programa, um momento musical, não propriamente da época romântica que caracterizou o século de Camilo mas sim do período barroco, deu um toque de arte ao ambiente. Atentamente escutada, a suite número três para alaúde BWV 995 de J. S. Bach, foi interpretada pelo jovem professor e instrumentista José António Ferra Silva, ao qual se seguiu um apontamento poético com a leitura do soneto de Camilo, “Os amigos” pelo actor Amílcar Mendes.

    DISCÍPULA ATENTA

    Fotos MANUEL VALDREZ
    Fotos MANUEL VALDREZ

    «Depois de amavelmente me convidarem, três razões me trouxeram aqui», começou por realçar a Professora Maria do Carmo Castelo Branco. «Em primeiro lugar por me ligar a Camilo Castelo Branco um forte laço familiar. Sou sua trineta e vivi com a neta mais velha. Por isso habituei-me desde muito nova a ouvir este nome e a lê-lo. Em segundo lugar porque sou professora de literatura e por último porque fui e continuo a ser uma discípula atenta do Professor Aníbal Pinto de Castro a quem os camilianos e a comunidade académica tanto devem».

    «A excelência da leitura dos estudos de Aníbal Pinto de Castro e da crítica do seu texto tão difundidos nas mais variadas publicações e a sua importante função como director do Museu de Camilo e do Centro de Estudos Camilianos fazem de si uma das mais prestigiadas figuras do saber em toda a estrutura literária e em particular na obra de Camilo».

    Raros são os que como Aníbal Pinto de Castro fizeram estudos tão profundos sobre Camilo, salvo Jacinto Prado Coelho, João Gaspar Simões, Alexandre Cabral, Óscar Lopes. Maria de Lourdes Ferraz, Alberto Pimentel, Magalhães Basto, esclareceu Maria do Carmo Castelo Branco, que acrescentou: «Quando se fala de Camilo fala-se mais do romance do escritor e menos sobre o escritor propriamente dito e do que ele escreveu. E isso é pena».

    Nesse sentido «Aníbal Pinto de Castro é um dos grandes críticos e leitores de Camilo em todo o sentido da palavra e é muito importante que fale da actualidade da novela de Camilo na estética e na Língua Portuguesa, sobretudo agora que o Acordo Ortográfico resolve abandonar todos os ecos da origem da língua, colocando-a num vazio sem tempo nem História».

    OBSESSÃO PELO JORNALISMO

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    Já Artur Villares, Director da Licenciatura em Comunicação do ISLA de Gaia, teceu algumas considerações sobre a acção e até uma certa obsessão de Camilo pelo mundo dos jornais, sublinhado a propósito «que a actividade jornalística foi sempre muito querida de alguns dos nossos maiores escritores. Literatura e jornalismo sempre se cruzaram nos grandes autores dessa época de ouro do jornalismo e da nossa literatura que foi o século XIX». E, na circunstância, aproveitou para citar Jacinto do Prado Coelho:

    De resto – asseverou Artur Villares – «o jornalismo acompanhou toda a vida de Camilo através dos célebres folhetins, prática que então possibilitava a publicação de romances nos periódicos e lhe permitia muitas vezes sobreviver no agitado dia-a-dia da sua vida».

    Como simples colaborador, a prosa de Camilo está presente em diversos periódicos, com destaque para “O Nacional”, “A Nação e O Eco Popular”,”A Semana” e “A Aurora do Lima”.

    O certo «é que Camilo sempre considerou a sua colaboração nos jornais como instrumental para os seus objectivos». Isso mesmo realçou Villares ao referir o carácter turbulento de Camilo que «não raras vezes lhe trouxe consequências graves. Como aquele momento em que, na sequência de ter tomado partido no Nacional, foi espancado violentamente pelos ofendidos».

    «Espancado na rua de Santo António, em reivindicação de um artigo de jornal, contra a família Constantino, então em demanda com a família Bolhão, Camilo, já por terra com uma larga ferida na cabeça, antes de ser levado em braços para casa do alfaiate Augusto de Moraes, desfechou ao peito do agressor um tiro, de que ele escapou pela circunstância de trazer em couraça um espesso colete de peles», escreveu Ramalho Ortigão a propósito. «Assim era Camilo Castelo Branco, construtor a tiros de palavras de uma obra incontornável, que ainda hoje nos ensina – haja quem ouça – o poder de uma consciência livre», finalizou o orador.

    UM ESCRITOR COM MEMÓRIA

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    Na última intervenção da noite, Aníbal Pinto de Castro começou por lembrar que gosta sempre de falar daquilo que tem obrigação de saber um pouco e dos textos que lhe dizem mais pela sua qualidade estética, acabando depois por enaltecer a intemporalidade da obra camiliana.

    Não pretendendo demorar-se nos dados biográficos de Camilo porque são sobejamente conhecidos, desde que nasceu em 1825, em Lisboa, aquele professor anunciou preferir pôr em relevo a forma de construção da ficção camiliana e as suas múltiplas formas de expressão em vários géneros; na poesia. na dramaturgia, na polémica e na epistolografia, “um campo que está por aprofundar, visto que existem ainda muitas cartas dispersas nas mãos dos descendentes dos seus destinatários que em vez de as facultarem aos investigadores, as aferrolham a sete chaves, às vezes até em cofres bancários privando assim que a Ciência progrida num ponto tão importante como esse para a biografia de Camilo” acentuou o professor da Universidade coimbrã.

    Logo no começo da obra “A Vingança”, diz o escritor: «eu não tenho imaginação, tenho memória do que vi, do que senti e do que experimentei. Se descarno as pinturas, se descrevo uma cena friamente é porque assim, os olhos que a viram a levaram à alma que a imprimiram».

    BIOGRAFIA E FICÇÃO

    Aníbal Pinto de Castro precisou que «no início das noites de insónia, num prefácio famoso, Camilo conta como nesses períodos sem sono e sem descanso vai ao jazigo das suas memórias e exuma de lá as figuras do desembargador, de meninas, de fidalgos e dialoga pela noite fora com essas figuras imaginárias como se essa fosse a melhor forma de construir a sua personagem». Isto para dizer – prosseguiu Pinto de Castro – que as «personagens ficcionais de Camilo vivem em grande parte da sua biografia ou das suas lembranças da vida, contracenando com personagens reais, seus familiares, seus conhecidos, seus contemporâneos, para fazer dessas individualidades, personagens ficcionais».

    Neste contexto, a epistolografia de Camilo contém elementos preciosos para se conhecer a fundo a vida do escritor e o que ele de lá retirou para a ficção.

    Um assunto que está por estudar nos seus aspectos mais complicados, os desta transformação da biografia e da autobiografia em ficção – como chamou a atenção, o director do Centro de Estudos Camilianos.

    É por isso que a novela camiliana é tão rica do ponto de vista poético e dramático. «Camilo tem um conhecimento profundo da língua», sustentou Aníbal Castro para continuar a explicar: «Ele começou a aprender em Vilarinho da Samardã com o padre Castelo Branco que lhe dava lições de português através da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e da leitura dos clássicos latinos e modernos».

    LEDOR INVETERADO

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    De resto, é o mesmo padre Castelo Branco que aparece na dedicatória de “O Bem e o Mal” e no início das “Memórias do Cárcere”. «Trata-se de uma figura paradigmática que Camilo descreve com muita beleza e que transparece com grande clareza poética», segundo o orador.

    Depois, Camilo era um ledor inveterado, adianta Pinto de Castro. «Lia tudo; até os relatórios dos Caminhos de Ferro, ele lia» – gracejou o professor de Coimbra. «E quando já não tinha paciência nem olhos encarregava Ana Plácido de fazer as leituras por si, resumindo-as em seguida, circunstância que lhe proporcionava uma nova forma de enriquecimento».

    RIQUEZA VOCABULAR

    Camilo tinha aquilo a que se pode dizer de forma redundante, uma acuidade aguda aos valores da língua. Ele ouvia o linguajar dos seus vizinhos, o praguejar nas ruas do Porto, Tudo aquilo de onde podia refazer a sua construção literária chegando até, não raramente a dar lugar a uma linguagem gestual. Um esgar, um torcer do nariz eram formas de explorar esse tipo de linguagem. Camilo mantém sempre a mesma sensibilidade perante aquilo que lê e observa. Daí a riqueza e a actualidade do seu estilo. Riqueza vocabular, versatilidade estilística, caracterizam a escrita de Camilo que continua a ser um autor moderno e enquanto inventor das suas formas de expressão ele continua actual. O seu texto continua a ser um elemento de fundamental importância para o enriquecimento da Língua Portuguesa, avalizou Pinto de Castro, que é um defensor confesso do Novo Acordo Ortográfico. «A língua não muda, o que pode mudar é o sistema gráfico», diz Pinto de Castro que já perto do fim da sua intervenção deixou um recado aos professores de Português que trocam essa “mina” que é a leitura da literatura portuguesa, pelas leituras de notícias mal redigidas de alguns jornais. Temos que estudar melhor o texto de Camilo porque Camilo sabia do seu ofício.

    Por fim, o orador exortou: «Vamos lutar por essa campanha a favor da Língua Portuguesa». E concluiu com uma citação de Horácio: «Construí um monumento mais perene do que o bronze».

    " OS AMIGOS "

    Amigos, cento e dez, ou talvez mais,

    Eu já contei. Vaidades que eu sentia:

    Supus que sobre a terra não havia

    Mais ditoso mortal entre os mortais!

    Amigos, cento e dez! Tão serviçais,

    Tão zelosos das leis da cortesia

    Que, já farto de os ver, me escapulia

    Às suas curvaturas vertebrais.

    Um dia adoeci profundamente. Ceguei.

    Dos cento e dez houve um somente

    Que não desfez os laços quasi rotos.

    Que vamos nós (diziam) lá fazer?

    Se ele está cego não nos pode ver.

    - Que cento e nove impávidos marotos!

    De: Camilo Castelo Branco

    Por: Álvaro Mendonça

     

     

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