O homem das duas caras
Um dos maiores nomes da Banda Desenhada europeia, tão conhecido pelos seus devaneios na ficção científica, ajudando a projectar mundos fascinantes, de grande palpitação, como a saga do Incal e, ao mesmo tempo, dando corpo a cenários realistas tão verosímeis, como a saga western do tenente Blueberry, estamos aqui diante de um autor tão dissimuladamente camaleónico que será difícil distinguir a mesma mão nos aludidas obras. Falamos, claro, de Moebius, aliás Jean Giraud, ou ainda Gir – embora assinasse muito menos obras desta forma – e serão vários os pretextos para o convocarmos hoje aqui, neste aproximar da Primavera de 2009.
De nacionalidade francesa – nasceu em Nogent-sur- -Marne, nos arredores de Paris, em Maio de 1938 – , começou a fazer Banda Desenhada muito cedo, com uma tira western intitulada “Frank et Jeremie”, aparecida na revista “Far West”. Em 1962, de parceria com Jean-Michel Charlier, aparece “Fort Navajo”, ainda um western, que marca o nascimento de Blueberry.
O jornal “Público” e a editora ASA têm vindo a desenvolver uma parceria digna dos maiores elogios, reeditando obras já clássicas da Banda Desenhada.
A última dessas parcerias trouxe-nos uma série de álbuns de “Blake & Mortimer”, as personagens criadas por Edgar P. Jacobs, um dos pontos altos da clássica linha clara franco-belga (sendo a linha clara um estilo artístico na BD assente numa estilização meta-esquemática do desenho, com coloridos simples, visando servir a leitura do enredo, muito figurativo, mas não propriamente realista). Nem todos os Blake & Mortimer da colecção são obra do seu criador, incluindo-se álbuns de alguns dos seus sucessores no desenho e criação de histórias das personagens.
Mas antes de Blake & Mortimer, o ”Público” e a ASA reeditaram “Blueberry”, o célebre western criado por Charlier e Jean Giraud, e não deverá ser difícil aos leitores, nas lojas do “Público” recuperar ainda alguns desses exemplares.
Porque, claramente, estamos aqui diante de um autor de primeira linha, o que pode comprovar-se assistindo à evolução da sua obra, certamente, mas também à consciência de si que Jean Giraud/Moebius revela de forma admirável e surpreendente.
Referimo-nos à publicação dos seus cadernos autobiográficos “Inside Moebius”, onde o autor reflecte, e ilustra como sabe, muito do percurso da sua vida, por exemplo o recurso a drogas alucinogénicas – que aliás estes cadernos – uma espécie de diário – substituem vantajosamente (é ele quem o diz), por exemplo o seu período de “delírio místico”, crente nos ovnis e em extra-terrestres, por exemplo a sua passagem ao lado da morte, quando ficou doente vítima de um cancro, e ainda os factos da vida real que vai ocorendo à sua volta (como o ataque às torres gémeas), emprestando além disso, também uma parte de fantasia, compondo personagens irreais ao lado das outras, combinando o humor com a poesia e a fantasia desenfreada que sempre o acompanhou.
Uma das características mais interessantes de “Inside Moebius” é a forma desapiedada com que se trata a si próprio, como se já estivesse por cima disso, retratando-se desdenhosamente como idoso de cerca de 70 anos que agora é (como naquela fabulosa vinheta em que se desenha a si próprio a dormir de boca aberta, enquanto o seu ego de há umas décadas o observa.
Jean Giraud reflecte sobre o seu percurso, a sua transformação e a do mundo, nos anos 60, e fá-lo com a sabedoria dos mestres.
A revista francesa “Casemate” – dedicada ao estudo e à divulgação da Banda Desenhada, mas num figurino que não pretende ser a crítica profunda e sistemática, virada para o estudo de autor, que foi a da mítica “Cahiers de la Bande Dessinée”, desaparecida em 1990, mas ainda assim, mergulhando por vezes de forma muito interessante nas motivações dos quadrinistas, apresenta, no seu nº 10, de Dezembro de 2008, uma muito interessante entrevista com Jean Giraud, apropósito da edição do quinto número de “Inside Moebius”.
Giraud lembra o percurso, as motivações, as técnicas, as temáticas com que se foi deparando ou escolhendo, e não deixa de ser curioso que se aventure pelo humor precisamente agora, já com uma idade provecta. Ele refere os humoristas que mais o tocam – sejam desenhadores ou cenaristas, como Boucq, Edika, Pétillon, Gotlib, Mandryka, Goscinny, Geluck.
E recorda como Giraud se fez Moebius.
De facto, é só nos anos 70 (mais precisamente em 1975), que com o aparecimento de “Bandard Fou” nasce o seu alter ego. Seguir-se-á “Arzach”, no ano seguinte, “A Garagem Hermética” surge em 76, “O Incal” (com o herói [?] John Difool), com cenário de Alexandre Jodorowsky, em 81, etc...
Por:
LC
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