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    Arquivo: Edição de 30-09-2008

    SECÇÃO: Crónicas


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    Chico e Maria – 2ª parte

    Cada povo parece ter inclinação especial para certo ramo de actividade comercial. Se os sírios e libaneses dominavam o sector dos tecidos e dos tapetes, os portugueses imperavam nos diversos segmentos da restauração. Algum tempo depois de ter desembarcado no Rio pela segunda vez, o Chico reuniu as economias que entretanto fizera, pediu emprestado a patrícios o que lhe faltava e conseguiu dar entrada num café, bar e leitaria. Dois ou três anos mais tarde quis trespassar o estabelecimento e avançar um pouco mais. Em sociedade a três, adquiriu um café, bar e restaurante com instalação antiga e restaurou-o seguindo o modelo, há pouco introduzido, de servir exclusivamente ao balcão todos os artigos, exceptuando a confecção e o serviço de refeições a que destinaram um espaço à parte. A situação estava agora um pouco mais desanuviada, o caminho abria perspectivas animadoras.

    Aproveitando o tempo de paragem devido às obras e de acordo com os sócios, pôde vir a Portugal ao encontro da esposa e dos seis filhos. Demorou-se por cá uns meses, tempo suficiente para mandar vir o sétimo herdeiro. O mais velho, então com dezassete anos, estava prestes a partir para se lhe reunir, quando o pai chegou. Acompanhou-o e deu-lhe todo o apoio possível ao longo de doze dos dezassete anos que o Chico esteve longe da restante família! – «Tanto tempo separados! – comentava-se na aldeia à medida que os anos passavam – É uma vida!».

    Atitude semelhante tinham-na alguns clientes do Chico, enquanto bebericavam a sua cerveja ao balcão, o que lhe aumentava a angústia ao pensar que os filhos iam crescendo sem que pudesse acompanhá-los.

    – Não deve haver no mundo gente como os portugueses: deixam mulher e filhos para trás e vão, sabe-se lá para onde, à procura de melhor vida.

    E concluíam:

    – Eu não era capaz de fazer o mesmo.

    Mal podiam imaginar que, décadas mais tarde, seriam eles a deixar as famílias e a atravessar o Atlântico com igual objectivo.

    O Chico ouvia e calava para não dar a conhecer os motivos que exigiam tão grande sacrifício. No seu íntimo, compreendia a estranheza dessas pessoas, mas ainda não tinha chegado a hora de colocar um ponto final na história. O filho ouvia os comentários e respondia:

    – Os meus pais sabem o que estão fazendo e vão resolver o problema no momento certo.

    O Genaro, um calabrês quarentão, que também viera lá da sua Itália em busca de melhor vida para a mulher e quatro filhos, gostava particularmente de se meter com o Chico no seu cómico linguajar:

    - Anque io no capisco i porthoguesi.Chico, fai come io che mi sono arrangiato con una bella ragazza, una mulata enxuta – e juntava as pontas dos dedos da mão direita que beijava soltando-os em seguida, num gesto apreciativo acompanhado de um piscar de olho.

    Como não podia melindrar os fregueses, o Chico sorria como que a dizer:«Anda lá, meu traste, que eu bem te conheço! Abandonas a tua verdadeira família e amazias-te com uma qualquer!»

    Mas a roda da vida não gira sempre ao mesmo ritmo e em idêntico sentido. As condições económicas que o país atravessou, desentendimentos com sócios e falhas do Chico nos “timings”de compra e venda dos negócios acarretaram-lhe prejuízos e tornaram quase impossível o envio do dinheiro necessário aos compromissos familiares.

    Com os filhos a estudar, o serviço da dívida a correr e a irregularidade das colheitas agrícolas, Maria passou anos de grande aperto, horas de imensa aflição. O que amenizou esse purgatório foi o bom aproveitamento dos filhos nos estudos e a ajuda que lhe davam sempre que podiam. Um deles, que deixara o Seminário logo no primeiro ano e ficara por casa, tinha assumido parte da responsabilidade no trabalho do campo, ainda no princípio da adolescência.

    No Brasil, e o Chico e o filho mais velho sofriam também por não conseguirem dar maior apoio à família e não vislumbrarem o horizonte através da espessa camada de nevoeiro que lhes tolhia os passos.

    E os anos iam passando…

    Um dia, o Chico e a Maria entenderam que a separação tinha ultrapassado todos os limites. O Chico voltou à terra e ao convívio da esposa e dos filhos. As mágoas e os grandes problemas foram vencidos. Quase todos os filhos tinham já encetado a sua vida profissional, à excepção do mais novo que frequentava o então chamado Ciclo Preparatório. Logo, começaram os casamentos. A primeira neta veio encher a alma dos que tanto haviam sofrido.

    A felicidade é breve e a dor é ciumenta e não desarma. Pouco tempo depois, o Chico faleceu em acidente com uma máquina agrícola. Para Maria, a chegada de outros netos de modo nenhum compensou a solidão resultante da perda do marido, após tantos anos de espera e angústia permanente. A poucos anos de acalmia, sucederam a doença, a intervenção cirúrgica, os tratamentos o definhamento progressivo e o inexorável desenlace.

    A fazermos fé nas manifestações da sabedoria popular, fruto duma experiência de séculos, quando a vida começa a ter algum desafogo e até um pouco do que chamamos felicidade, eis que a parca Átropos empunha a sua tesoura e corta o fio da existência que as suas irmãs sustentaram. Os gregos, que atribuíam aos deuses as virtudes e os defeitos dos humanos, reconheciam a crueldade como um dos atributos da divindade; para os cristãos, as circunstâncias da morte são compreensíveis à luz dos desígnios de Deus e não se encontram ao alcance da compreensão humana.

    Maria assim o entendeu. Embora soubesse a causa do seu padecer, aceitou o sofrimento com resignação, nunca se lamentou e, até ao último instante, esforçou-se por causar o menor incómodo possível aos familiares e, em especial a uma das noras que cuidou dela com o maior desvelo.

    Por: Nuno Afonso

     

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