Errante
Agora que, muito possivelmente, me aproximo de outra despedida,
apetece-me recordar a despedida anterior. Talvez para me sentir capaz desobreviver a mais esta...
Sou professor e, por isso, errante. Ou, então, foi a minha natureza vagabunda que me levou a ser professor. Sei lá...
Há quase um ano atrás eu estava a despedir-me. Recordo bem esse dia.
Tratei das últimas papeladas na escola e fui à noite dizer adeus a Sesimbra: estive no alto do parque de campismo, a olhar a vila iluminada. Vi aquilo tudo com as luzes da noite e o campanário da igreja a sobressair. Parece-me que estou agora a ver as casas, muito juntas, desenhadas naquela bela moldura de rocha. Há lugares que vou recordar pelo tempo fora, como diz a canção... Fazem parte de mim, cresci por ali...
Por fim, fui até junto dos navios. Era o meu passeio favorito. Gostava de sentir a maresia, de observar os pescadores atarefados...
Agradava-me, sobretudo, reparar nos nomes dos barcos. Diziam-me coisas, às vezes, os nomes dos barcos.
Nesse último dia, as embarcações pelas quais passei, ao ir-me embora, eram estes, assim por esta ordem: /Mar Lindo/, /Amor ao Ofício/, /Vou com Deus/. E fiquei a saber que não voltaria no ano seguinte. Os barcos costumam acertar naquilo que me dizem. Soube que ia deixar o mar lindo, por amor ao meu ofício de professor. Vou com Deus. Vou... Sou errante.
No ano seguinte o concurso ofereceu-me um lugar diferente. Nem foi novidade. Montanha e neve, em vez de mar.
Habituei-me a viver num novo lugar como se fosse habitar ali durante o resto da vida, apesar de saber que muito provavelmente não estaria lá mais do que alguns meses. Inicio a lenta tarefa de criar amizades, aprendo nomes novos, entrego-me a rotinas diferentes...
A saudade, depois, custa. Mais de uma vez pensei que seria melhor deixar simplesmente passar o tempo, sem criar laços que depois hão-de criar dor. Mas sempre afastei essa ideia, e nunca me arrependi. O país, com o tempo, transformou-se num jardim habitado: jardim, porque lhe conheci muitos belos recantos; habitado, porque há agora rostos associados aos nomes de tantas povoações.
De vez em quando, chegam-me cartas, ou telefonemas, de origens diversas.
Acompanho à distância coisas que sucedem lá longe e, de alguma maneira, vivo ainda nesses lugares. Espero que a Vera, lá em baixo, depois de tantos problemas, consiga desta vez passar de ano. E que o Luís, lá em cima, arranje no próximo ano uma boa colocação numa escola e não tenha necessidade de andar a distribuir o jornal de madrugada. Dizem-me, de vez em quando, que há um outro casamento.
Perguntam-me por vezes: «Quando vens cá?». E quando vou há labaredas de alegria, abraços cheios de sentido, conversas que continuam.
Sei que o remédio para a saudade não é... a ausência de saudade. Tive saudade de todos os lugares onde trabalhei ou vivi. Parti com dor para chegar a outras terras que depois também não quereria deixar. E que não teria conhecido se não tivesse partido do lugar anterior. Conheci pessoas, que foram importantes para mim, por ter sido arrancado à companhia de outras pessoas também importantes para mim.
Quando, numa nova escola, me perguntam de onde sou, não sei que responder. Sou de tantos lugares...
Quando escrevo, escrevem comigo aqueles com quem conversei sobre algo mais que o tempo, futebol e política. E os que cresceram a meu lado. E aqueles com quem de muitas maneiras aprendi muitas coisas. Levo comigo de algum modo, para onde quer que vá, um cortejo de gente amiga. Também alguns que já morreram. Estou com eles, muitas vezes, ao anoitecer, quando há sossego.
Vou deixar agora este escrito: tenho aqui à frente, à espera de que eu o preencha, o boletim do concurso para o próximo ano. Nunca fiquei colocado onde queria, mas estou resolvido a querer aquilo que resultar deste papel. A recebê-lo como um presente. Sei que, num lugar ou noutro, não terei chegado ao final das minhas alegrias e das minhas dores.
Por: Paulo Geraldo
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