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    Arquivo: Edição de 15-03-2008

    SECÇÃO: Crónicas


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    Quem come e dorme com todo o mal pode

    O dia tinha sido fatigante como são todos para um professor que se preze: seis tempos lectivos de manhã, e uma tarde a preparar as aulas do dia seguinte, a elaborar fichas de trabalho para os alunos, a corrigir outras, a planificar unidades didácticas, a participar em reuniões cada vez mais frequentes e enfadonhas com as imprescindíveis deslocações à escola. O Ministério da Educação determina que, para completar o horário do professor, são atribuídas nove horas semanais de trabalho “em casa”. Bah! Algumas disciplinas, como a Língua Portuguesa, necessitam do dobro ou mais e essas não são pagas. Acresce que a política traçada pelo Ministério tem privilegiado o afrontamento onde deveria prevalecer o diálogo; o enxovalho dos docentes onde o bom senso aconselharia o diálogo mútuo, só ele construtivo; a injustiça criminosa que vem sendo aplicada a docentes com gravíssimas doenças a que muitos não têm resistido, obrigados que são a morrer no seu posto; as ameaças descabidas contra profissionais merecedores do maior respeito pela sociedade; a enxurrada de decretos, despachos normativos e portarias, anulando agora o que pouco antes se tinha determinado, num exercício asfixiante e traumático. Muitas vezes interrogo-me se haverá coração no peito dos nossos políticos ou apenas uma máquina de calcular e ignorância quanto baste para esquecer o princípio básico segundo o qual nenhuma reforma poderá ter êxito se não contar com o apoio entusiasta dos agentes que devem pô-la em prática. A senhora ministra não tem perdido nenhuma oportunidade para tripudiar sobre os professores. Na Grande Entrevista de 6 de Março, lembrou-se de afirmar que a avaliação dos docentes que pretende implementar é bem mais favorável e clara do que a dos restantes funcionários públicos. Como ousa comparar o trabalho dos professores com o de outros funcionários quando sabe perfeitamente que não são comparáveis? Há um motivo, sim, qual seja o de concitar a atenção da “opinião pública,”pela enésima vez, contra os malandros dos professores que não querem ser avaliados. A senhora ministra sabe que isso não é verdade. Mas é tal o desconhecimento da escola e dos professores que a maioria dos cidadãos apoia a campanha que a titular do Ministério lançou contra nós. A estes juntam-se alguns comunicadores sociais que revelam tamanha ignorância sobre a vida nas escolas e os trabalhos dos professores que bem parece nunca terem frequentado uma escola. Quanto a clareza, estamos conversados: é tão confusa que nem os responsáveis dos estabelecimentos de ensino sabem como vai funcionar.

    É penalizador o testemunho de professores que lamentam não ter as condições (idade e tempo de serviço) para se aposentarem. Ouvir da boca de pessoas como a minha colega Helena Abreu e Lima, senhora de grande inteligência e sensibilidade artística, e de uma dedicação extrema ao seu múnus, «estou à espera que seja publicada a lei das carreiras e remunerações da Função Pública para me ir embora» é sinal eloquente do desânimo que faz caminho entre nós. Aliás, esse é o estado de espírito quase unânime, como tenho constatado em conversas com professores de vários quadrantes. As escolas onde antes reinava a amizade e a concórdia tornaram-se terreiro de manobras escusas, de luta pela supremacia em relação aos seus pares, da inveja que é característica dos pequeninos e que pode conduzir a terríveis situações de injustiça. Conheci algo parecido quando fiz o meu estágio pedagógico. Também não tem sido habitual que a escola valorize e faça render as competências de cada professor para além das que são exigidas para leccionar.

    Nos três últimos anos, a pressão que tem sido exercida sobre nós é esmagadora. A nossa acção como educadores, já de si difícil, tornou-se desgostante, angustiosa e desmotivadora. Querem avaliar o quê? O grau de depressão que atingimos? Onde vamos buscar a alegria indispensável à motivação dos nossos alunos para as matérias que desejamos sejam assimiladas?

    O dia, a que aludi no início deste trabalho, aconteceu no mês de Junho de 2006, quando nuvens carregadas já toldavam o céu. Ao fim da tarde tivéramos reunião do Departamento de Línguas em que vários assuntos importantes tinham sido discutidos. A agenda não fora concluída e, consultados os meus pares, convoquei nova reunião para o dia seguinte. Ao deitar-me, não senti qualquer perturbação anormal, mas, pelas três horas da manhã, acordei e não mais pude conciliar o sono. Duas horas mais tarde, levantei-me e desci ao escritório. Revi a acta da reunião e estabeleci algumas coordenadas para o encontro seguinte. A perda de sono era algo que nunca me tinha acontecido e deixou-me, naturalmente, perturbado. Passei por idêntica situação três ou quatro vezes em momentos de grande desgaste emocional ditado pelas novas condições de trabalho.

    Era inevitável a comparação do que me pareceu uma tragédia com os bonançosos dias da minha infância e juventude e a bênção que representava o descanso tranquilo após cada dia de estudo ou de trabalho no campo. Nada melhor do que uma boa noite de sono para afastar pensamentos obsessivos, tristezas, decepções, e renovar os mais fagueiros sonhos. Que felizes foram os anos que passei na aldeia dos meus pais! Manhã cedo, ainda o sol não tinha dado acordo, e já se ouviam vozes, risos e bater de tamancos no soalho de castanho. Eram homens e mulheres que vinham trabalhar em regime de torna-jeira e se preparavam para tomar o mata-bicho: bom pão centeio, presunto, salpicão, alheira, vinho ou aguardente. Raramente eu despertava, não obstante o ruído que faziam e, se adregava acontecer, de imediato, retomava o sono até que a minha mãe viesse acordar-me para tocar os animais ao lameiro e guardá-los de avançar sobre propriedades alheias. Em sábado de aleluia, mandava a tradição que os sinos da igreja tocassem até à madrugada do Dia de Páscoa e, conquanto a nossa casa ficasse a pouca distância do campanário, não conseguiam molestar o meu descanso. No Brasil, roído de saudade da minha mãe, irmãos e amigos, oprimido pelo cansaço, o sono foi sempre o meu grande aliado. O estágio pedagógico era para cada professor um calvário de fadiga mental e emocional. A luta pela melhor classificação trazia-nos o sistema nervoso em franja. Apesar de tudo, nunca deixei de dormir “como um anjo”. Bastantes anos são decorridos, algumas décadas de trabalhos e de aborrecimentos sempre retemperados após noites bem dormidas. Até essa noite de Junho!

    No que diz respeito à alimentação, nunca dei consumição aos meus pais. O tio Zezé apreciava o meu bom apetite e dizia:

    – Benza Deus este menino que dá gosto vê-lo comer! Nunca será preciso lavar-lhe a boca com sal e vinagre.

    Teve razão. Felizmente, até ao dia em que escrevo esta crónica mal cozinhada, nunca me faltou apetite. Eu é que tenho de estabelecer os limites do gastronomicamente correcto.

    O povo diz que “o sono é meia mantença” e que “saco vazio não aguenta em pé”. O saco mantém-se aprumado, mas, no que concerne ao sono, a sua falta abre caminho à doença e ao mal-estar.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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