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    Arquivo: Edição de 30-01-2008

    SECÇÃO: Crónicas


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    A minha tia Inês

    A maioria das mulheres declara-se atraída por homens altos e fortes, mas ainda bem que tal não é mais do que um estereótipo mental, senão, homens como eu estariam arredados da concorrência por via duns centímetros abaixo da média e longe de poder entrar em competições de luta greco-romana e quejandas. È de toda a conveniência que, além desses predicados, haja outros de ordem moral, intelectual ou económica.

    Lembro-me da tia Inês já entrada em anos, baixinha e com aquele ar distinto a que nem os anos nem as dificuldades conseguiam retirar o charme. Eu, criança, adorava estar com ela, porque falava bem e contava-me histórias e adivinhas, coisa que, em minha casa, ninguém podia fazer. Um dia perguntou-me:

    – Que mais queres: um saco de piolhos ou um homem despido?

    Nenhuma das opções me encantava, mas, se um piolho já era muito incómodo, um saco deles nem é bom imaginar. Respondi que preferia um homem despido. Ela riu-se, complacente, e esclareceu:

    – Um saco de piolhos é um cacho de uvas; o homem despido é o que fica depois de comidos os bagos.

    Sei que a empatia era recíproca porque nunca mostrava enfado com as minhas traquinices e achava muita graça ao que eu dizia quando ainda possuía o sotaque brasileiro. Desse tempo, ficaram muitas histórias que me tornavam mimado no seio da família. Perdeu-se de riso certa vez em que ouvimos o ruído dum avião e eu perguntei receoso:

    – Ó tia Inês, será que os meus pais mandaram vir outra menina?

    É que eu tinha uma irmã com pouco mais de um ano cujo berço me encarregavam de embalar e, como me diziam que eram os aviões que traziam os bebés, antevia já dupla tarefa.

    Tranquilizou-me ao explicar que havia muitas encomendas, talvez aquele avião fosse para outra terra.

    Nunca punha em causa o que os mais velhos me diziam e os meus pais ensinaram-me a moderar a minha curiosidade. Só bem mais tarde pude conhecer factos que então me passavam despercebidos e foi por terceiros que os apreendi, porque, em casa, não era costume falar-se da vida alheia. Muitas interrogações me assaltavam. Donde lhe vinha aquele ar distinto? Porque não ia para o campo como as outras mulheres e só raramente saía de casa? Quem eram as pessoas da cidade que amiúde a visitavam? Porque a tratavam por Dona Inês e não por Senhora Inês como às restantes mulheres da aldeia? Porque…?

    Era professora primária já aposentada na época em que a conheci. Era mulher do tio Jorge, um dos irmãos mais velhos do meu pai. Em comum tinham dois filhos, um rapaz e uma rapariga, já bem crescidos. Em traços largos, isto é o que eu sabia, algo de muito parecido com milhentas outras histórias de gente por esse mundo e arredores. O que distingue umas de outras há-de ser o que está por detrás das figuras, aquilo que só podemos ver se as pusermos em movimento, actuando nas circunstâncias que foram as suas. Já dizia Ortega e Gasset que «o homem é ele e as suas circunstâncias», não é verdade?

    Pois a Dona Inês foi nomeada para a aldeia de Alimonde nos anos vinte do século passado. A escola funcionava na casa paroquial que a diocese cedera ao Estado, porque o abade há muito residia noutra povoação e a igreja não tinha necessidade do edifício para as actividades pastorais. As aulas eram dadas na sala, os restantes cómodos destinavam-se a uso da professora. Ali passou ela a residir, beneficiando da hospitalidade dos moradores que lhe levavam produtos da horta, carne da criação, enchidos variados e lenha para cozinhar e para se aquecer nos dias frios. Era uma senhora a rondar os trinta anos de idade, casada com um comerciante estabelecido na vila de Macedo de Cavaleiros e mãe de quatro filhos.

    (...) FOSSE PELA

    FAMOSA LEI

    DA ATRACÇÃO

    DOS CONTRÁRIOS...

    Quem viesse de fora, padre, professora, agente da autoridade do Estado, funcionário de qualquer instituição pública ou privada, teria, forçosamente, que se relacionar com a família do meu avô paterno, um dos mais abastados lavradores da terra, tanto mais que a sua casa ficava mesmo no centro da aldeia em frente à escola, bondava atravessar o caminho. O tio Jorge era o segundo filho do casal. Era “um cacho (catcho) dum home” como dizia o Antunha, ele um “dez reis de gente”, em tom admirativo: passante de um metro e oitenta de altura e famoso por ter levado, sozinho, um carro de bois, novinho a estrear, por uma ladeira acima. De resto, nunca frequentara a escola, ao invés de todos os outros irmãos que possuíam a instrução primária. Fosse pela famosa lei da atracção dos contrários ou por naturais ditames do coração, a senhora deixou-se enlear pelo porte másculo do meu tio.

    Levando em conta a época e os valores de uma sociedade rural católica e tradicionalista, entre os quais sobressaía a indissolubilidade do matrimónio, o facto de uma mulher casada tomar-se de amores por outro homem que não o seu marido, ainda que fosse abusivo falar-se de adultério, era motivo de enormíssimo escândalo. As ondas de choque daí resultantes ultrapassaram o concelho e chegaram até Macedo, onde o marido vivia. Chamou-a este à razão, usou todos os argumentos moral e socialmente fundados, apontou-lhe a situação dos filhos envolvidos na borrasca, quis saber que motivos lhe assistiam para trocar uma situação que reputava estável por uma frivolidade ruinosa. De nada valeram os seus esforços, como ficou provado pela insistência das notícias que lhe faziam chegar. O caso afigurou-se-lhe irreversível. Também os meus avós e tios saíram a terreiro, tentando demover o tio João do vilipêndio que atingia, de igual modo, a sua família. Tudo em vão. O meu tio há muito atingira a maioridade, a Dona Inês usava o seu amor como escudo contra todas as investidas dos que pretendiam evitar uma tragédia. As proibições, o corte de relações com a mulher que viera enlamear o bom nome duma família considerada, foram inúteis. O ambiente adensou-se e atingiu o clímax ao saber-se que o comerciante preterido tinha optado pela morte voluntária ante o labéu que, desgraçadamente, o envolvera. O sacrifício duma vida foi a lanceta que permitiu esvaziar o foco tumoral em que o caso se transformara. Aos poucos, a agitação acalmou, outros assuntos vieram preencher o espaço da maledicência, entreter as conversas dos longos serões invernais.

    Com efeito, o tempo possui o condão de esbater as feridas mais dolorosas e induzir a aceitação e a concórdia onde antes havia intransigência e repúdio. Por outro lado, um amor que assim resiste às maiores provações torna-se credor de admiração e até de respeito. Com a bênção da Igreja e a discrição que em casos tais se requer, a Dona Inês e o tio Jorge casaram logo que as normas canónicas o permitiram. Instalaram-se numa parte do casarão que os meus avós lhes facultaram. Os filhos do primeiro matrimónio vinham, de quando em quando, visitar a mãe. Os meus primos casaram e foram chegando os netos. Como a situação económica da família se tornou difícil, abalaram para o Brasil.

    Continuei a visitá-los sempre que ia de férias. Ela partiu mais cedo, o tio Jorge sobreviveu ainda alguns anos. Depois, estive ausente e, ao regressar, disseram-me que ele a tinha seguido.

    Desejaria poder afirmar que foram felizes para sempre, mas esta não é uma história de fadas. Feliz é apenas a memória que deles me ficou e que, religiosamente, guardo enquanto viver.

    Por: Nuno Afonso

     

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