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    Arquivo: Edição de 10-12-2007

    SECÇÃO: Cultura


    AVE Jovem

    ARDEMO-NOS...

    Ardemo-nos em silêncio e ao silêncio nos remetemos para sempre

    Por: Daniela Ramalho

    CONCERTO PARA VÓS

    Num dia em que a noite tinha um brilho mais escuro, e que as estrelas tinham um brilho mais forte, as pedras da calçada mortas e gastas, ganharam vida e ressuscitaram vezes e vezes sem conta. Haviam passos que as cobriam, com sapatos obtusos, largos e angulosos, e havia o ruído a dizer baixinho que estavam a chegar. Ao fundo da rua havia a árvore. Não uma árvore, mas a árvore. Porque nela estava toda a beleza, a beleza intransponível daquilo que se chama cor. Folhagens robustas, vermelhas e amarelas, nunca castanhas, lisas, não sujas, jovens e não gastas. Os passos chegavam perto e mais perto. A terra por baixo das pedras tremia devagarinho, como se tivesse medo de acordar as casas e acender luzes. Os passos da frente pararam, depois os segundos e os terceiros, até que por fim todos pararam silenciosamente. Os passos da frente pousaram completamente no chão, afirmando a sua chegada e moldando os pés às rugas da rua. Os outros seguiram-nos. As mãos dos passos da frente percorreram o ar, cheiraram-no e mergulharam-no, fizeram um sinal às outras mãos dos outros passos. Da noite surgiram violinos, do nada surgiram pianos, dos cabelos surgiram guitarras, dos dedos surgiram harpas, e mais do que os olhos podiam querer. As mãos pousaram nos instrumentos e premiram acordes. O som da harpa ouviu-se no fundo do escuro, e a sua nota musical engravidou o ar. O som do violino surgiu desconcertado e fino, despertando ainda mais as estrelas. O piano límpido e certo sempre no compasso e sempre cortando minutos e segundos. E a guitarra rouca e grave que se fazia soar como o maestro do concerto…E tudo começou, fazendo rodopiar a noite e as notas que saíam e dançavam no ar, num bailado quase intocável que tocava a dormida das casas. Não por muito tempo. A dormida despertou, e a pouco e pouco as luzes das casas surgiam a quebrar o escuro, como velas desmaiadas na imensidão de um escuro compacto. Imperturbável a música continuou. Nada dentro de linhas, tudo fora de limites, cada um por si a harpa tocava, o piano tocava, a guitarra tocava o violino tocava, como se não existisse nada e tudo existisse e girasse em torno deles…Sons agudos e estridentes e graves e surdos e mudos e cegos, e apesar de nada tocarem em especial eram os sons mais leigos e bonitos que o mundo alguma vez tinha ouvido. Baques secos, raspar de cordas e descoordenação de tons e notas, lindo desatino de música, lindo soar da noite e lindo soar de tudo e nada junto numa só alma. Concerto para a noite, concerto para a árvore bonita, concerto para as pedras gastas, concerto para as casas. Tudo em plena consciência e nada adormecido. Poder de música que começara baixa e se tornara estrondosa. As mãos não paravam de se mexer, não enquanto toda a noite não acordasse junta. Não enquanto todas as casas da rua, da região, do país e do mundo acordassem. Os dedos ficavam sem forças, e as unhas em carne viva de tanto rasparem nas cordas, o violino rasgado, o piano sem tino, a guitarra e a harpa quase sem cordas. Tudo a acordar. Acordem pedras! Acorda árvore! Acordem folhas! E ramos! E lua! E estrelas! E tudo acordado! Acordem casas! Acordem tudo e todos! Para isso serve o concerto dos passos tocado pelas mãos! Para isso serve esta música que ouvem…as casas em alvoroço, mas a voltarem ao sono, e a lua e as estrelas muito mais mortiças que no antes do som, e a árvore mais quieta que a própria morte…e tudo encerrado num mundo que teima em não acordar.

    Por: Sofia Nunes

     

     

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