A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL TEM CEM ANOS (18)
Diário de um Prisioneiro de Guerra (parte 1)
No período da Primeira Guerra Mundial a pior Batalha que sofreu o Exército Português, foi a de La Lys Os combatentes portugueses, nas primeiras quatro horas de batalha que se desencadeou na madrugada de 9 de abril de 1918, conheceram milhares de baixas, entre mortos, feridos, desaparecidos e prisioneiros. O número de prisioneiros portugueses estima-se em quase 7 mil e quinhentos soldados.
Um deles era ao tempo Tenente-Coronel, e foi pai do 2.º Presidente da República, no período do Estado Novo, General Craveiro Lopes. No período em que esteve preso, o Tenente-Coronel João Carlos Craveiro Lopes escreveu um "Diário", onde narra as dificuldades então vividas.
João Carlos Craveiro Lopes, então com 47 anos, foi um dos milhares de militares portugueses, que se tornou cativo das forças alemãs naquela trágica manhã do dia 9 de abril de 1918.
Nos sete meses em que conheceu a condição de prisioneiro, como oficial do exército português, passou ao papel aquilo que era o dia-a-dia dos prisioneiros portugueses que pôde testemunhar de tão perto.
O seu filho Francisco Craveiro Lopes, na altura Tenente, também havia sido mobilizado para a 1.ª Guerra Mundial, mas para Moçambique. Mais tarde, em 1926, o oficial capturado pelos alemães chegará a general. O filho Francisco, que combatera em Moçambique, chegará a marechal e será o segundo presidente da República do Estado Novo. Após desentendimentos com Salazar, será substituído no cargo por Américo Tomás.
Este artigo tem por base a divulgação que foi feita pela RTP, de alguns aspetos deste "Diário", graças à cedência que dele fez o Coronel João Craveiro Lopes, que é neto do seu autor e que, no contexto da evocação do centenário da Primeira Guerra Mundial, entendeu e bem que se trata de um documento de enorme valor histórico.
A CAPTURA
DOS PRISIONEIROS
PORTUGUESES
E AS CONDIÇÕES
EM QUE RESISTIAM…
"Os militares portugueses renderam-se e foram feitos prisioneiros. Tiveram de entregar armas, cinto, capote. Foram conduzidos para a retaguarda e ao cabo de várias horas de marcha chegaram a Illies, local do Quartel-General da Divisão alemã, "onde o general nos mandou ir à sua presença, apertando-nos a mão e oferecendo para tomarmos uma chávena de chá".
Prosseguiram depois a marcha e, em 15 de Abril, chegaram a Karlsruhe, seguindo daí para o campo de Rastadt, onde ficarão nos meses seguintes. Os alemães separavam os prisioneiros segundo a patente e tinham campos especificamente destinados aos oficiais. No de Rastadt, havia um quarto por cada cinco oficiais prisioneiros. Foram vacinados contra tifo, varíola e cólera. Havia também oficiais superiores ingleses e franceses.
As normas do campo determinavam que os prisioneiros fizessem continência a qualquer oficial alemão e que se levantassem quando este entrasse. Podiam deitar-se sobre a cama durante o dia, tirando as botas. Estavam avisados de que seriam alvejados se se aproximassem do arame farpado".
Outra história de captura de prisioneiros, no mesmo dia 9 de Abril de 1918, durante a referida Batalha de La Lys, é testemunhada pelo Alferes de Artilharia - 2.ª Bateria, 7.º Regimento de Artilharia, Carlos Olavo Correia de Azevedo:
"São 11 da manhã [9 Abril 1918] (...). Não há nada mais torturante, angustia maior do que esta incerteza (...). Uma ordenança que mandei ao 1º obus com uma ordem de fogo não voltou mais; dois homens que mandei a um paiol para trazerem umas granadas não voltaram mais! Tenho a certeza de que ficaram pelo caminho, feridos ou mortos! (...) Os momentos que se seguiram foram de absoluto recolhimento. Tinha a certeza de que ia morrer. Pensei naqueles que longe chorariam a minha perda: a minha família, alguns amigos seguros, todos os que sofriam a minha ausência (...). Um soldado que tinha saído veio-me dizer que há alemães no Pont du Hem, quer dizer, à retaguarda da nossa posição, vindos dos lados de Laventie. Estamos perdidos, cercados, prisioneiros! (...) Nunca me senti tão desgraçado pelo inesperado de uma situação cuja probabilidade afastei sempre do meu destino. Vencido (...) resolvi sair à frente dos soldados que tinha. Confesso que me dominava um misto de humilhação e de tristeza, por me sentir vencido, sem meios de resistência (...). Quando os alemães me aperceberam, encaminharam-se na minha direcção e o oficial que os comandava apontou-me uma pistola (...). Marchei serenamente, direito a ele, sem um gesto, sem uma palavra (...). O boche baixou a pistola e indicou-me o caminho [para a retaguarda alemã]. Segui então, direito a Neuve Chapelle, pela estrada de La Bassèe (...). Em Neuve Chapelle, parei para ser enquadrado com outros prisioneiros (...) que nos haviam de guardar até o fim do nosso destino."
Uma das primeiras entradas do "Diário" de Craveiro Lopes, a que a RTP deu atenção, foi à do dia "29 de Abril" de 1918, em que Craveiro Lopes, vinte dias após o seu aprisionamento, escreve: "Leio, dormito e convivo, procurando assim enganar a fome e passar o tempo o mais depressa possível (…) Deitei-me às 8h30, depois de um passeio pelo campo, admirando frondosas árvores da Floresta Negra". Se um oficial prisioneiro se queixa de passar fome, imagine-se o que se passava com a maioria dos combatentes portugueses, que eram simples soldados.
Outros testemunhos conhecidos dão-nos conta de que os prisioneiros passavam muito mal em termos de alimentação. Como se já não bastasse o facto dos hábitos alimentares serem completamente diferentes daqueles a que estavam habituados, os prisioneiros de guerra dependiam total e exclusivamente da comida que os guardas alemães lhes davam, o que fazia com que a fome fosse quase uma constante. Mesmo no período normal de Guerra, não sendo prisioneiros, alguns se queixavam da alimentação escassa, então como cativos o problema agravou-se e de que modo. A fome fazia com que os soldados passassem por situações de grande fragilidade física e mental, levando a uma enorme desmoralização que, não raro, descambava em confrontos físicos entre si.
Voltando ao "Diário" de Craveiro Lopes, também ele, elegia o problema da alimentação como um dos problemas principais para os prisioneiros, fossem de que nacionalidade fossem.
Ao longo dos sete meses de cativeiro, o Tenente-Coronel Craveiro Lopes dedica-lhe muitas entradas do seu "Diário". Aí se verifica que quase todos os "menus" tinham por base, "batatas, milho, beterraba, carne de foca e outros recursos gastronómicos característicos dum tempo de penúria".
Ao longo de mais de meio ano como prisioneiro de guerra, as queixas sobre a alimentação são recorrentes, embora sejam mais incisivas nalguns momentos de maior escassez.
Quando a fome era maior, chegava a "dar-se o caso de se entornar um caldeirão de sopa, e de os prisioneiros andarem com canecas a recolher do chão o que fosse ainda aproveitável para poderem comer".
As reivindicações por causa da falta de alimentação eram tantas que o próprio Craveiro Lopes teve a iniciativa de organizar uma Comissão, a que presidiu, tendo em vista a permanente troca de impressões com o Comandante do Campo de prisioneiros, tendo em vista a melhoria da alimentação e outros aspetos da vida quotidiana dos prisioneiros naquele Campo.
Os dias em que a fome apertava mais eram aqueles em que o número de prisioneiros aumentava e o pouco alimento tinha de ser dividido por mais "bocas". Assim aconteceu a 8 de junho de 1918, quando o Tenente-Coronel Craveiro Lopes, passa para o seu "Diário" este desabafo que demonstra bem o sofrimento que ali se vivia: "Estamos na situação mais desgraçada que se pode imaginar! Mil vezes as trincheiras com todos os perigos".
Por:
Manuel Augusto Dias
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