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    Arquivo: Edição de 30-10-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    Emigração em tempos idos

    Pelos séculos afora, este foi um país eminentemente agrícola, o que vale por dizer que a maioria da população, em comunidades de tamanho variável, ganhava o pão de cada dia cultivando a terra com recurso a duríssimo trabalho braçal. A sedução por uma vida melhor levou tantos a buscar outras paragens e a sonhar com dias melhores. Antes dos nossos pais terem passado além do vasto oceano, já havia notícia de conterrâneos que os tinham precedido. Ao contrário do que muitos afirmam, o espírito aventureiro do povo português não foi a principal razão do êxodo porque a ele se opõe o apego telúrico, esse sim marca distintiva do carácter da nossa gente. Quem parte transporta consigo o desejo de voltar, se possível em melhores condições financeiras. A personagem camiliana do “brasileiro”, que trazia muito dinheiro e o ridicularizado sotaque de além-mar originou a metáfora da árvore das patacas. Não creio que alguém a entendesse à letra mas, se tal aconteceu, enganou-se redondamente. O que esperava o patrício era muito trabalho, uma certa hostilidade do natural que invejava a rápida mudança de estatuto do quase recém-vindo: «chegou ontem de tamancos às costas e já é dono de botequim», a íntima dor da separação da terra e da família.

    Infelizmente nem todos os que partiam regressavam a transbordar de riqueza e de comportamentos pitorescos, se não ridículos. Alguns chegavam desiludidos, preferindo a pobreza do seu torrão natal a uma terra que lhes foi madrasta, como o António Junqueira de Carrazedo; outros experimentaram destinos alternativos como o meu primo Luís, a Zaida do Duque ou o Luciano Batuta, que optaram pela França depois de terem vivido no Brasil. A maioria, porém, ficou, criou raízes e, sem esquecer “a santa terrinha”, ganhou nova pátria, que deixou como herança aos seus descendentes. Até meados do século XX, os destinos preferidos foram a Argentina, a Venezuela e o Brasil para os continentais, a África do Sul para os oriundos da Madeira e os Estados Unidos da América para os açorianos. O Brasil foi, sem dúvida, o campeão das vidas alternativas. Basta que prestemos atenção aos apelidos dos atuais cidadãos brasileiros em que dominam claramente os Fernandes, Rodrigues, Borges, Oliveiras, Souzas (Sousas), Ferreiras e por aí adiante, envolvendo os procedentes de países europeus e asiáticos A estes deve acrescentar-se um ror de outros que, em vagas de espírito nacionalista, trocaram os sobrenomes portugueses por vocábulos do léxico indígena.

    Os que arriscaram emigrar para o continente americano sabiam que a necessidade e a distância eram obstáculos difíceis de vencer. Antes de um hipotético regresso à terra-mãe havia que obter uma situação económica tranquila e, quando esse objetivo era atingido, frequentes vezes optava-se por constituir família no país de acolhimento, o que tolhia quase por inteiro antigo sonho. Lembro-me das hesitações do tio José entre o casamento com uma sul-americana a que aspirava e a renúncia à pátria, que temia. No seu caso e no de muitos outros, a decisão inclinou-se para a estabilidade familiar, tanto mais que a língua, os hábitos e os valores sociais e religiosos eram idênticos aos que conheciam desde o berço. «A minha terra é aquela que me dá o pão e algum conforto» – assim diziam muitos para adormecerem a saudade da aldeia longínqua em que tinham nascido. Assim, obtida a alforria económica, tornava-se mais fácil ultrapassar outras dificuldades para que o desejo de voltar e de rever parentes e amigos pudesse acontecer. Eram visitas curtas, interregnos para reorganizar a vida quando a decisão quanto ao futuro já estava tomada.

    A emigração portuguesa processava-se de modo diferente da de outros povos. Enquanto os italianos e espanhóis, via de regra, seguiam em grupos familiares, entre os portugueses era o homem que tentava fazer o ninho antes de chamar a mulher e os filhos que deixara na terra. Estes juntar-se-lhe-iam logo que as condições o permitissem ou continuariam até que ele pudesse regressar o que, às vezes, implicava uma prolongada separação dos casais. Enquanto esse projeto não era atingido, os filhos, sob a orientação da mãe, preparavam-se para a vida estudando. Os brasileiros achavam muito estranho este procedimento e garantiam ser incapazes de fazer o mesmo. Talvez tivessem razão porquanto, em certos casos, marido e esposa viviam largos anos separados, os filhos cresciam sem a presença do pai e, quando este aparecia, pouco mais era do que um estranho não obstante o continuado esforço das mulheres para manterem acesas a lembrança e as qualidades dessa figura que mal conheciam. Também o maior ou menor grau de sucesso do homem influía nesse reencontro com a esposa e os filhos. Conheci famílias em que o êxito do pai lhe conferiu lugar muito especial no relacionamento e na memória dos filhos; outras em que o insucesso paterno determinou um quase ostracismo independentemente das virtudes que possuíam. Hoje penso que nada pode justificar a separação de duas pessoas que se amam durante uma parte mais ou menos longa das suas vidas ainda que isso determine um rumo diferente no futuro da prole. Os que aceitaram essa amputação, na perspetiva de um futuro mais risonho para os filhos, praticaram um ato de heroísmo não só em relação a eles mas a toda a sociedade. «Tudo vale a pena se a alma não é pequena», lembrava Pessoa.

    O tio Manuel não se perdeu em elucubrações desse tipo. Enquanto dirigia o seu táxi, um daqueles veículos antigos de fabrico norte-americano, pelas ruas do Rio de Janeiro, decidiu que o lugar da esposa e dos filhos era a seu lado quaisquer que fossem as dificuldades daí advenientes. E um dia, a meio do pretérito século, deu início ao processo que haveria de reunir a família na então capital brasileira onde também já vivia o tio José, seu irmão mais novo. Diferentes na maneira de encarar as situações, o tio José manifestava-lhe com frequência o seu receio quanto às dificuldades que resultavam duma tal aventura, enquanto o tio Manuel sorria confiante na intercessão divina. Chamar para junto de si, além da esposa mais sete filhos, o mais novo dos quais com apenas três anos de idade, não era, para o tio José, decisão que se tomasse de ânimo leve.

    - Então Manuel, como vão os preparativos da viagem?

    Tranquilo, o tio Manuel dava conta das informações que chegavam do outro lado do Atlântico. O tio José insistia:

    - Já arranjaste casa para os receber?

    - Ainda não, mas estou a tratar disso.

    Daí em diante, sempre que se encontravam, repetia a pergunta e obtinha idêntica resposta. Um dia, o tio Manuel disse-lhe que a família já tinha data marcada para o embarque.

    - Onde é que ides morar, já sabes?

    - Não mas estou à espera duma resposta. Não te preocupes!

    Mas o tio José preocupava-se. Dias mais tarde, o irmão disse-lhe que a esposa e os filhos estavam quase a chegar.

    - Já tens alojamento preparado?

    Aborrecido com tanta insistência, o tio Manuel saiu-se com esta:

    - Ó homem, enquanto eu tiver este carro, a minha família não dorme na rua.

    E não dormiu. À chegada do navio lá estava o tio Manuel, prazenteiro, à espera dos seus. O táxi ficara estacionado numa rua próxima do cais. O tio José também não quis ficar ausente deste momento especial. E, em meio aos cumprimentos, ficou a saber que o irmão sempre havia encontrado uma casa para albergar a família.

    Por: Nuno Afonso

     

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