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    Arquivo: Edição de 15-02-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    Há sempre alguém que diz Não

    Pobreza é um nome abstracto que remete para um conceito indigno do género humano e traduz uma realidade absurda e degradante. Não é compreensível que, mais de dois mil anos depois que Jesus Cristo instituiu o mandamento do Amor, haja centenas de milhões de pessoas reconhecidamente pobres, enquanto um restrito número de indivíduos possui a esmagadora maioria dos recursos do Planeta.

    O reconhecimento de que todo o ser humano “tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à habitação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade” está expresso no artigo 25º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovado a 10 de Dezembro de 1948 pela Assembleia Geral da O.N.U. e veio documentar um anseio que foi manifestado por grandes espíritos desde as antigas civilizações e inspirou e fortaleceu a boa-vontade de incontáveis outros ao longo dos milénios. A rápida expansão do Cristianismo contribuiu de forma decisiva para revelar a todo o género humano o sentimento de fraternidade que a todos devia unir. Apesar dos progressos que nos separam dos nossos mais longínquos antepassados, em vários domínios estamos ainda longe de compreender, na sua plenitude, tal sentimento. Ao invés de buscarmos a felicidade com os demais, procuramos, egoisticamente, o êxito e o usufruto dos bens materiais em oposição aos nossos semelhantes. Afastamo-los do nosso convívio, esquecemo-los, espoliamo-los tanto quanto é possível e, nos momentos difíceis, não hesitamos em subtrair-lhes até o que pode garantir a sua sobrevivência.

    Para muitos, os pobres são feitos de outra massa, “filhos de um deus menor”, só porque não tiveram as mesmas oportunidades ou capacidades. “Arre burro, arre burrico, quem nasceu p’ra pobre não chega a rico”, diz-se nas aldeias do interior norte. É comum também justificar a desigual posse de bens com a expressão “tem que haver ricos e pobres, não é?” a traduzir uma evidência como haver dia e noite, nascimento e morte, preto e branco e tantas mais. A pobreza seria uma espécie de maldição a que poucos logravam fugir quando nasciam em lar de reduzidos haveres. A indumentária revelava a posição de cada um face ao poder económico. Os pobres vestiam mal, embora limpeza nem sempre conjugue bem com necessidade. Vestir camisa lavada teria antes o sentido de camisa nova o que, em tempos antigos, era privilégio dos mais abonados. A dicotomia rico/pobre e a ênfase que, através dos tempos, se colocou na virtude da caridade, na esmola como penhor de santidade dos mais favorecidos talvez tenham originado estas e outras manifestações de fatalismo. Felizmente, nem todos aceitam essa inanidade complacente, muitos esforçam-se por minorar a fraqueza dos mais débeis, contribuindo com donativos, com a sua ajuda em acções solidárias ou colaborando na promoção das pessoas pelo seu mérito em vez da sua posição social. Não é preciso ter vivido situações difíceis para imaginar os dramas que afectam, em dado momento da vida, tantos dos nossos irmãos a necessitar de mão amiga, de palavras confortadoras, de empenhamento em abrir portas àqueles que, via de regra, nelas batem com o nariz.

    Estamos a viver um desses graves momentos: número indeterminado de famílias ou de indivíduos, como num passe de mágica, transitaram de uma condição económica tranquila para um sufoco desesperador, quer porque perderam os seus postos de trabalho, num tempo em que a probabilidade de encontrar outros é ínfima, quer porque viram bastante reduzidos os seus vencimentos sem terem alternativa de que possam lançar mão para colmatar os cortes sofridos, quer ainda porque é escassa a oferta de empregos para jovens, mesmo para os que apresentam currículos intelectualmente valiosos. O corte nos salários e nas pensões bem como o acrescento nos impostos ainda não são conhecidos em toda a sua extensão, com certeza serão mais penalizadores do que o já divulgado.

    O anonimato das grandes cidades esconde dramas de fome e de desespero, muitos de todo inesperados, que os media vão noticiando e as estatísticas oficiais e de entidades privadas de utilidade pública, regularmente confirmam. As instituições de solidariedade social multiplicam esforços na angariação de donativos, mas nunca serão capazes de mediar as necessidades de uns e a generosidade de outros porque esta é sempre menor do que aquelas. Além do mais, há inúmeras pessoas que se envergonham de hoje terem que pedir o que, não há muito, esbanjavam, numa ostentação entretanto volatilizada. Perderam-se habitações para cuja aquisição houve recurso a crédito bancário, automóveis e outros bens, igualmente objecto de empréstimos, que os financiadores retomaram, crianças e jovens que foram obrigados a passar de colégios pagos para escolas públicas, hábitos de consumo que tiveram que ser drasticamente alterados, chegando mesmo a extremos de penúria até há pouco inimagináveis.

    Noutras ocasiões, a população rural passava ao lado das crises porque, magro que fosse, o produto das terras garantia-lhes a subsistência e a tranquilidade existencial de que os citadinos, em grande medida, careciam. Actualmente, certas zonas do país apresentam-se desoladoramente despovoadas ou com poucos habitantes, de idade avançada e que, a muito custo, granjeiam o sustento diário. Ainda assim, conseguem satisfazer as necessidades primárias e contribuem para o sustento dos familiares que vivem na cidade. Filhos e netos, na sua maioria, emigraram, integraram-se em sociedades mais desenvolvidas e raramente voltam às aldeias de origem. Grande parte das terras do interior estão tristemente abandonadas e não parece haver retorno.

    Mais do que nunca:

    • Ser pobre não é condição é condenação.

    • Pobre não sonha, vive em constante pesadelo, receando despertar para um pesadelo maior.

    • Ser pobre é persistir numa ilusão que a cada instante morre e no instante a seguir renasce.

    • Ser pobre é ceder a sua independência, é ter a própria liberdade cerceada pela liberdade alheia.

    • Ser pobre é ver em cinzento o que outros vêem em cor-de-rosa.

    • Ser pobre é sentir-se impotente perante outros bem armados.

    • Ser pobre é ter consciência de que a balança da justiça pende sempre para o lado de outros.

    Estejamos, porém, certos de que “a vida toda é composta de mudança”, no dizer do nosso Épico, que, por mais que os horizontes se estreitem, muitos conseguem sobrenadar as ondas do infortúnio para a outra margem e que todos os seres humanos possuem recursos capazes de lhes proporcionarem uma vida melhor. É indispensável que acreditem em si próprios e mobilizem toda a sua força de vontade para atingirem os seus objectivos. Lembremo-nos de que:

    Mesmo na noite mais triste

    Em tempo de servidão

    Há sempre alguém que resiste

    Há sempre alguém que diz Não.*

    * Manuel Alegre – “Trova do Vento que Passa”

    Por: Nuno Afonso

     

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