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    Arquivo: Edição de 15-01-2011

    SECÇÃO: Crónicas


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    Quem mal começa mal acaba

    Não me recordo de alguma vez ter acordado com o trinar dos pássaros, o glorioso canto do galo ou os primeiros raios do sol. Afirmá-lo conferiria ao discurso um lirismo capaz de impressionar as pessoas da cidade que possuem gaiolas com aves canoras penduradas nas marquises e crêem em lugares-comuns como o galo a cantar matinas e o sol a beijar-nos e a dizer bom--dia, mas não diz bem com a dura realidade do campo. Os pássaros são tardegos 1 nos gorjeios matinais; galos e seres humanos não se entendem com os horários – “à meia-noite se levanta o francês” – reza o provérbio, mas o galináceo canta, ainda os camponeses vão no primeiro sono, produzindo, de início, um estremecimento do corpo e, logo, a beatitude de interiorizarem que sobram algumas horas de relaxe, mais adiante solfeja, com igual entusiasmo, para um auditório vazio, porque todos os aldeões já abalaram; o sol vem quando tem que vir e, prazenteiro, saúda o trabalhador já a caminho das leiras, quantas vezes este junge os animais e apõe-nos ao carro à luz do luar.

    Quem nos despertava, infalivelmente, era a gritaria do Pletcho com a mulher e os filhos, num despejo mútuo de insultos e obscenidades, manhã bem cedo, como se tivessem que excretar os maus humores nocturnos para bem começarem um novo dia. Ou então, seriam, na casa ao lado, os descendentes do tio Maçãera, que não conheci mas diziam ser homem sensato e honesto, pessoas azoratadas que um visitante julgaria intérpretes de comédia bufa, tal o despropósito das discussões com abundância de impropérios, fazendo guarda de honra a um palavreado desconexo e trôpego. Curioso é que, sendo todos gagos ou tardos da fala, diziam as asneiras com enorme clareza. Esta gente, conhecida não só pela nomeada paterna mas também por outras como Carracó, proveniente da ascendência feminina, tinha, manifestamente, uma aduela fora do sítio e, como eram numerosas e diferentes as aduelas, mais do que uma família parecia um grupo de papagaios a quem tivessem ensinado frases soltas profusamente ilustradas com palavrões.

    Não obstante o hábito de falar alto muito próprio de pessoas da aldeia, Pletchos e Maçãeras excediam o número de decibéis que ouvidos humanos podem tolerar sem prejuízo para a saúde auditiva, sobretudo ao início da manhã antes de começarem as tarefas agrícolas. A essa hora, toda a aldeia acordava, desde as Casas d’Além até ao Cabo, chegando o desconcerto a casa do Malino, no alto do Serralhão.

    Ouvidos estranhos poderiam ficar surpreendidos com os excessos de linguagem daquelas pessoas que, ao invectivarem os seus familiares, não só ofendiam a dignidade destes, mas a si próprias se flagelavam, proferindo, com a maior desenvoltura e sem-cerimónia, “os nomes das festas” 2. Porque não haveriam de, pensar que, se a mulher chama cabrão ao marido, admite a sua infidelidade, se chama “filho desta ou daquela” a um filho, assume-se como “mulher da vida”; se é o marido que põe em questão a honra da mulher, aceita que o considerem chifrudo e o mesmo acontece se pronunciar “filho desta ou daquela” dirigindo-se a um filho; de igual modo, o filho ou a filha, ao pretender dar resposta a um dos progenitores ou aos dois em simultâneo com palavras do mesmo jaez, não deixa igualmente de se auto-estigmatizar?

    Ora, para os intervenientes, o que pronunciavam não eram, rigorosamente, palavras, porquanto, à força de serem repetidas, deixavam de ter qualquer significado. Passavam a ser meros significantes, apenas objectos que aprenderam a pronunciar e repetiam, material sonoro constituído por unidades articuladas que, todavia, não eram tidas por ofensas, porque vazias de sentido. Tanto assim que o tio Pletcho e a mulher mantiveram-se unidos até que a morte os separou, não consta que tenham passado das palavras a actos de agressão e os seus filhos jamais denegaram os laços de sangue com os pais e entre si. Já, na casa ao lado, o futuro demonstrou que o tecido emocional da família era menos consistente ou que as trocas afectivas foram sobrepujadas pelas circunstâncias desfavoráveis da vida e pelos desajustamentos mentais dos seus membros. Os mais equilibrados constituíram família e apartaram-se, enquanto os que ficaram em casa entretiveram sempre um relacionamento difícil de cujo programa não fazia parte o respeito mútuo. Morto o Checho, da numerosa irmandade restaram o João (Janeta) e a Albertina, encarregando-se esta de repovoar a casa com três novos membros que fez a meias com o tio Zé Cuco. A seu tempo, todos emigraram para a França, o Álvaro, mais conhecido por Im, e a Maria por lá ficaram, o Fernando, raramente chamado pelo verdadeiro nome antes por uma variedade de alcunhas (Cernandes, Cuco, Labaredas, etc.), teve permanência curta no país dos Avecs. Ao longo de bastantes anos, a família possuiu uma junta de vacas para o trabalho agrícola, desempenhado, ora pelo tio Janeta, ora pelo sobrinho Fernando.

    A dado passo, o Janeta também atravessou os Pirenéus e enfrentou a vida no Hexágono 3. Sem instrução nem qualificação profissional, chegada a hora da reforma, adquiriu passagem de retorno e buscou ilusório acolhimento na velha casa familiar. A pensão que recebia da Sécurité Sociale, sem a dádiva dos chãos que já ninguém cultivava, era eufemismo de miséria. O Fernando, dono de uma resistência física invulgar, apesar de alcoólico, pouco fazia para prover à alimentação dos dois homens. A Albertina tinha falecido alguns anos antes, restavam só aqueles dois “marretas” a quem a vida pouco ensinara em termos de são convívio.

    O Janeta, que sempre fora mais sociável, tinha saídas engraçadas que ficaram na memória colectiva prontas a serem citadas quando viessem a propósito. Certa ocasião, passaram pela aldeia dois indivíduos que, como era habitual, se dirigiram à taberna do tio Adriano próximo do Largo d’à Bica. Era domingo e, no espaço contíguo ao estabelecimento, havia muitos homens, uns sentados em toros de madeira em animadas partidas de sueca ou de chincalhão, outros em pé a jogar “petanca” (pétanque), desporto muito vulgarizado desde que os emigrantes “franceses” em vacanças o introduziram e o gosto pela novidade o foi consolidando. Muito mais gente estanciava por ali, assistindo e dando palpites, ou em pequenos grupos à conversa, temperada a vinho ou a cerveja. A presença de estranhos despertava, naturalmente, muitas atenções, palavras e gestos não escapavam à análise e a posteriores comentários dos assistentes. Um desses comentadores especializados era o Janeta, na meia-idade, mais de conversa do que de jogatina, não obstante a prática de alguns dos seus irmãos. Não lhe escaparam os modos um tanto afectados dos visitantes e, na primeira oportunidade em que se falou do assunto, saiu-se com esta:

    - São larilas, tio Adriano, são larilas. E o mal apega-se!

    O Janeta que, nesses tempos de maior vigor, bebia o seu copito, com o avanço dos anos deixara-se de excessos, mas o sobrinho fazia do garrafão instrumento mágico que o levava ao mundo dos sonhos que a realidade teimava em contrariar. Na casa desconfortável, que a falta de cuidados deixara semi-arruinada, e de que eram, agora, os únicos ocupantes, passavam as noites de Inverno em meio a insultos, ameaças e despautérios de toda a ordem, num arremedo de vela (serão) à moda antiga em que era uso contarem-se histórias e conversar amigavelmente sobre acontecimentos da vida familiar e comunitária. Nas quatro ou cinco horas que mediavam entre o anoitecer e a hora de se envolverem nas mantas tão gastas como eles, quase inúteis em madrugadas tão frias, forçoso era que houvesse, em casa, lenha bastante para manter a lareira acesa. O Janeta, já sem mobilidade, exigia que o Fernando alimentasse o fogo mas este, bêbado como um cacho, abraçado ao garrafão, respondia torto ou nem ouvia, toldado como tinha o entendimento.

    Talvez a cena não fosse virgem mas, como diz o ditado, “tantas vezes vai o cântaro à fonte que, um dia, lá deixa a asa”, numa daquelas noites em que o termómetro desce a temperaturas fortemente negativas, depois de muito pedir ao sobrinho que pusesse mais uns rachos 4 na lareira, recebendo em troca um chorrilho de injúrias ou um avinhado silêncio, o Janeta entrou em hipotermia e apagou-se ao mesmo tempo que a última faúlha da lareira. Não se sabe quem deu o alarme, presume-se que tenha sido o Fernando depois que os vapores do álcool lhe permitiram discernir o que havia acontecido. Alguém diligenciou que fossem tomadas as medidas necessárias para dar ao Janeta um fim digno de todo e qualquer ser humano.

    Quem julga que o Fernando se mostrou muito compungido com o trágico fim do tio, enganou-se. Já o corpo se encontrava em câmara ardente, na igreja paroquial, eis que o Fernando entra no templo aos ziguezagues e, ante a estupefacção de quem rezava por alma do falecido, exclama:

    - Vai-te lá embora, alma do diabo, e não voltes cá a f.-me a pacência.

    Algum tempo depois, o Fernando foi internado num Lar de Idosos em Bragança onde ainda se encontra.

    1 Tardego (region.) – tardio, que chega mais tarde.

    2 Nomes das festas (region.) – nomes feios, insultos.

    3 Hexágono – nome que os franceses costumam atribuir ao seu país devido à sua forma geométrica.

    4 Racho (region.) – acha, pedaço de um toro de lenha, rachado em 2 ou em 4, para queimar na lareira.

    Por: Nuno Afonso

     

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