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    Arquivo: Edição de 15-04-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    A “Ópera do Malandro”

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    À boca da cena um chapéu panamá oferece o primeiro indício e antes de subir o pano, um par de exímios sambistas, trajados à moda dos anos quarenta, executa um número empolgante.

    A subida do pano mostra-nos um cenário, estilizado é certo, mas onde figuram todos os ícones que tornaram famoso o bairro da Lapa no Rio de Janeiro: os famosos arcos, prostíbulos, proxenetas, pederastas, botequins (caixas de madeira onde eram acomodadas as garrafas de cerveja, ali utilizadas como provisório assento dos malandros), o escritório esconso de Duran, dono dos lupanares daquela zona, a rua, espaço onde se movimentam Max, contrabandista, e seus capangas, Chaves, o policial corrupto que procura jogar em todos os tabuleiros e actua nos planos que mais lhe convêm, os agiotas, vampiros omnipresentes e prontos a tirar partido da fragilidade alheia. O musical começa, Max e a malandragem que o acompanha de terno branco e gravata encarnada, chapéu panamá branco e sapato bicolor (branco e preto), assim como as mulheres “da vida”, dançam em ritmo frenético e ar gingão característico do bas-fond carioca.

    Os críticos do espectáculo já apresentaram todas as análises plausíveis, assentes num dado unânime: o génio de Chico Buarque de Hollanda, autor da peça. Com efeito, ele é, como testemunha outro vulto enorme da intelectualidade brasileira, António Carlos (Tom) Jobim « ... um génio da raça, depositário da cultura popular brasileira. Grande poeta, grande músico, grande letrista, grande escritor, grande tudo...». A obra fala por si, não apenas esta, que seria suficiente para lhe perpetuar o nome, mas todo o extenso rol de canções, livros, poemas, interpretações, oferecido a todos os públicos que vão tendo a ventura de o conhecer. Membro de uma família de ilustres figuras da cultura em Língua Portuguesa, filho do historiador e ensaísta Sérgio Buarque de Hollanda e sobrinho do filólogo e também ensaísta Aurélio Buarque de Hollanda, tem feito jus à tradição familiar e apresenta-se, na época do audiovisual e do império da media, como um dos representantes máximos da herança lusíada. Fora do mundo das letras e de restritos círculos académicos e sociais, o nome de família não ia muito além do exótico e do sonoroso. Bastou uma canção de sucesso para que Chico ultrapassasse largamente essa barreira. É o próprio tio quem diz que, tendo ido a uma grande capital europeia participar num congresso, pelas calendas de 60, época em que “A Banda” de Chico Buarque se ouvia por toda a parte, o jovem funcionário aduaneiro que lhe examinou o passaporte mostrou entusiástica surpresa face à dupla de apelidos e desta maneira formulou a sua curiosidade:

    – O senhor é, por acaso... ?

    Aurélio atalhou num tom, a um tempo, jocoso e irónico com a presença de espírito tipicamente brasileira.

    – Sou sim. Sou tio da “Banda”.

    Perdoe-me o leitor esta divagação e retomemos o fio do discurso. Não duvido que Chico Buarque, pela sensibilidade que sempre revelou em relação aos mais fracos e desprotegidos, tivesse olhado para a dependência e humilhação das mulheres com simpatia, que destacasse a injustiça gritante do relacionamento entre seres iguais na dignidade, mas profundamente diferentes no viver quotidiano e que, simultaneamente, recorde, saudoso, o ocaso de Max Oversears, “o último dos românticos.”

    A década de 40 do século XX em que a história se localiza é um ponto de viragem na sociedade brasileira, assim como a nível mundial. Com o termo da 2ª Grande Guerra, chega ao fim o Estado Novo personificado em Getúlio Vargas, ventos democráticos sopram com mais intensidade, intensificam-se os movimentos nacionalistas em África e na Ásia, promulgam-se, no Brasil, leis trabalhistas das mais avançadas do mundo.

    Conheci o bairro da Lapa em finais dos anos 50. O ambiente de marginalidade permanecia. Era um bairro de má fama e mau aspecto com antigos sobrados envelhecidos, ruas sombrias e pouco limpas, botequins cheios de mesas com tampo de mármore e cadeiras em madeira quando, noutros pontos da cidade, a moda do café-em--pé estava em plena expansão. Os patrícios, que dominavam o comércio retalhista no sector da alimentação e afins, impuseram esse novo modelo com o objectivo de evitar a ocupação do espaço comercial sem a correspondente receita monetária. O cliente era servido ao balcão e só tomava assento se desejasse almoçar ou jantar, em pequenos espaços reservados para o efeito.

    Ainda conheci alguns daqueles que, na gíria carioca, são conhecidos por “malandros”. Malandro não era só o indivíduo que apreciava a boa vida e tinha pelo trabalho uma relação semelhante à que Maomé dispensava ao toucinho. Figura sociologicamente muito interessante, além de refractário ao dispêndio de energia, era sujeito de muitos truques, vivaço, que se entregava a expedientes de legalidade, no mínimo, duvidosa, o pequeno contrabando ou o proxenetismo por exemplo, que impunha respeito no seu círculo e se mostrava urbano, até subserviente sempre que intuísse daí retirar alguma vantagem.

    À medida que a sociedade se transformava, a figura do malandro adquiriu a aura romântica de que falam os críticos, sobretudo se os compararmos com a escória que o narcotráfico originou, pondo em carne viva a existência dos mais desafortunados.

    Apesar de tudo, saí do Coliseu ainda mais certo de que o Brasil foi, é e será um grande país, não obstante todos os inimigos que, dentro e fora, conspiram para o vencer.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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