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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-01-2006

    SECÇÃO: Crónicas


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    O valor da tolerância

    Rio de Janeiro, Março de 1966. Na Pontifícia Universidade Católica um novo professor é apresentado aos alunos do curso de Ciências Políticas e Sociais. Possui nacionalidade portuguesa e um doutoramento pela mais antiga e prestigiada Universidade do Reino Unido: Oxford. Especialista em Civilizações do Médio Oriente, vem ocupar a cadeira de Cultura Religiosa. Tem um ar jovem, descontraído, e grande poder de comunicação.

    Durante um semestre seguimos com interesse os temas que vai explanando e realça com histórias da sua vivência europeia, das suas viagens e estudos na região onde floresceram tantas e tão importantes civilizações e foi berço de muitas religiões, entre elas algumas das que têm, hoje, maior número de crentes. Lembro-me de ter enfatizado a tolerância e o respeito que devem sempre existir relativamente a credos e outras formas de cultura e que um cientista, mais do que outro homem qualquer, tem obrigação de manter.

    «Em Oxford privei com estudantes naturais de vários pontos do globo – dizia--nos. Lembro-me de um muito especial. Era indiano e, não fosse pelos caracteres físicos, ninguém o distinguiria de um inglês: a mesma postura, igual purismo linguístico, idêntico racionalismo, irmanados gostos, hábitos, formas de trajar e de se divertir. Adorava jogar críquete e muitas vezes o acompanhei ao campo, embora eu não apreciasse tal desporto tipicamente anglo--saxónico. Mantínhamos longas conversas sobre os mais variados assuntos, tanto no campus como em passeios no exterior do college.

    A pátria de Gandhi e de Nerhu era ainda, no fim dos anos 50, um jovem país onde a influência inglesa estava muito presente e atraía fortemente as populações urbanas oriundas das castas superiores que, tal como neste caso, mandavam os seus filhos prosseguir estudos no país colonizador. Muitos permaneceram ali, uma vez obtido o doutoramento, aproveitando as enormes potencialidades do país para fazer carreira; outros regressaram às origens, inflamados no desejo de contribuírem para a transformação económica e social da sua terra.

    O meu amigo regressou à Índia. Queria colocar a brilhante inteligência e a vastíssima cultura que possuía ao serviço dos seus concidadãos. Tinha um convite para chefiar o departamento de Antropologia da Universidade de Bombaim e sonhava lançar a semente de um grandioso projecto na área das Ciências Humanas. Aceitou de bom grado a proposta».

    Fez uma pausa e continuou:

    Ilustração RUI LAIGINHA
    Ilustração RUI LAIGINHA
    «Há três anos reencontrámo-nos em Nova Iorque no átrio do Hilton em plena Quinta Avenida. Tive alguma dificuldade em reconhecê-lo na sua indumentária hindu. Cumprimentámo-nos, mas olhou-me de um jeito como se eu fosse o mensageiro de um mundo que preferia esquecer. Acedeu ao meu convite para tomar chá ali mesmo no hotel. Recordámos os bons tempos de convívio, as deslocações a Londres com passeios pelo Soho, os fins de tarde em Picadilly Circus e Trafalgar Square, antes de regressarmos à base para mergulhar nas imensas pesquisas bibliográficas noite dentro. Pareceu-me, pouco à-vontade, nada expansivo, mais polido do que participante como se o tivessem arrebanhado para entrar em filme protagonizado por estranhos. A dado passo, quando falávamos das crenças antigas, deixou que o seu fervor religioso actual o traísse. E foi para meu espanto que afirmou, com a mais absoluta convicção, que "os males do mundo ocidental se deviam ao facto de as pessoas comerem carne de vaca". Ao despedirmo-nos, eu tive a certeza de que o nosso abraço era antes protocolo, selava o fim duma boa amizade.

    A bordo de um avião da extinta Viasa, companhia aérea venezuelana, seguíamos de Caracas para o Rio de Janeiro em classe turística. Ao nosso lado sentava-se um jovem brasileiro de ascendência síria, vendedor ambulante na Ilha Margarida, em viagem de férias ao país natal. Falava um português estropiado por expressões linguísticas em espanhol dos trópicos. Aquando da primeira refeição, Hilal, assim se chamava,olhou com desconfiança para uma fatia de salmão fumado, ali no tabuleiro à sua frente como se fosse o diabo a desafiá-lo.

    “Jamón!” – exclamou horrorizado.

    – Não, Hilal, não é isso. É peixe, salmão fumado. Pode comer à vontade.

    O esclarecimento não o convenceu. A cor do acepipe assemelhava-se ao que, vagamente, conhecia como presunto, abominado pelos muçulmanos. Permaneceu quieto, sem tocar na comida. Aconselhámo-lo a chamar a hospedeira de bordo e a pedir a substituição da iguaria por outra. Ao inteirar-se dos receios que assoberbavam o rapaz, a jovem respondeu com frieza:

    É isso ou nada. Não há alimentos de reserva.

    Intercedemos e tentámos explicar à senhora que, sendo o moço islâmico, não queria infringir uma das leis da sua religião. Inútil. Voltou a dizer que a norma, a bordo, era igual para todos. O que não podia ser verdade. O Hilal ficou sem pequeno almoço, pelo simples facto de aquele alimento ser de origem suína, o que contaminava tudo o resto, mas, sobretudo, devido à intolerância da hospedeira de bordo. Se o saudoso jornalista brasileiro Manuel da Nóbrega, descendente de libaneses e portugueses e prócere denodado pela aproximação entre os povos de culturas e credos diferentes, soubesse do ocorrido, ter-se-ia sentido revoltado e havia de empreender outra das suas nobres campanhas contra essa e semelhantes formas de discriminação.

    Em muitas artérias do Rio de Janeiro, madrugada a dentro, é comum encontrarem-se despachos, em geral nos cruzamentos, como oferendas a um orixá, provavelmente a Ogun, filho de Iemanjá, lutador, guerreiro, com o objectivo de fazer mal a alguém que por ali passe habitualmente. Os mais comuns incluem uma galinha morta, preta de preferência, uma garrafa de aguardente de cana, determinada quantidade de farofa, velas e outros produtos que o Pai-de-Santo determine. Alguns motoristas, levianamente, "passam por cima"; outros mais correctos conduzem de maneira a não tocarem na oferenda. Por regra, os brasileiros, ainda que não acreditem, compreendem e respeitam as crenças trazidas de África pelos antigos escravos e convivem sem complexos com uma infinidade de credos de outras proveniências que fazem curso naquele imenso território. O sincretismo religioso é motivo de orgulho do povo brasileiro e a sociedade baiana é bem o exemplo dessa harmonia em que santos do cristianismo e divindades do candomblé se identificam. Ogun, por exemplo, é identificado com S. Jorge, o vencedor do dragão. Jorge Amado soube, melhor do que ninguém, espelhar nas suas obras a harmonia vivencial desse povo».

    Por: Nuno Afonso

     

     

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