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    Arquivo: Edição de 15-10-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    D. ERMESENDA, A DEVOTA (6)

    No Paço de Avioso

    Entretanto, os cavaleiros de D. Paio Guterres, despedem-se das duas damas que escoltaram e continuam a viagem para o burgo portugalense. As duas religiosas seguem agora no séquito dos homens da Maia ao lado do sobrinho e do irmão seguidos pelos servos de abegoaria com as mulas de carga. Passam a encruzilhada com o caminho que vai para Villa Vermudi ou Vermuy (Vermoim), Barrarios e para o vellho Mosteiro de Sam Salvador de Moraria (Moreira). Cavalgam depois por um trilho florestal que os leva por terras do couto de Sam Perofins, Sam Fins de Fellguossa, terras do Cornado e Covelos, Sam Martim de Barca, Guondim até às da cidadelha de Avyosso onde avistam, ao longe, no alto dum outeiro, cercado de campos cultivados, a escura silhueta da torre de menagem do Paço fortificado dos senhores da Maia1, com o amádigo pela infanta D. Tareja (Teresa).

    Ao toque duma pequena trompa que um dos cavaleiros trazia a tiracolo e a faz soar, a grossa porta chapeada da barbacã, abre-se lentamente, e o grupo de cavaleiros e homens de lança que cercavam as nobres damas, com D. Gonçalo e D. Mendo na frente, entram no terreiro lajeado, logo seguidos pelas azémolas de carga que os servos conduziram para um grande alpendre colmado. Os cascos dos ginetes e mulas a bater no lajedo do terreiro, o tilintar das armas, o tinir dos lorigais e cotas de malha e as escarpas ferradas dos cavaleiros ao apearem-se, os lebreus a ladrarem todos aqueles ruídos tão familiares, no meio da azáfama da preparação da viajem do dia seguinte, provocaram um baque a D. Ermesenda, trazendo-lhe à memória a sua infância e juventude naquele Paço de seu pai, o temível D. Gonçalo Trastemires da Maia, presor das terras de Montemor.

    O velho Piniolo, o vílico do solar, um parente afastado, já idoso mas honrado cavaleiro que recebeu a pranchada da mão do D. Gonçalo Trastemires e companheiro de seu filho Mendo Gonçalves, cumprimenta familiarmente as senhoras, troca algumas saudações e dirige-se ao jovem Mendo que segue com ele, talvez para tratar algo dos preparativos da jornada para Leão que já se fazia num dos cobertos alpendrados onde a azáfama era grande.

    As anfitriãs, D. Gontrode Moniz, mulher de Soeiro Mendes, acompanhada do jovem filho Aurvelido, da filha Goda e da cunhada D. Urraca Teles, esposa de Gonçalo Mendes, assoma à porta da torre de menagem. D. Ermesenda é ajudada a apear--se pelo sobrinho Gonçalo e dirige-se com D. Maior para as sobrinhas e sobrinho que a aguardam junto à porta da torre. Reparam então que estão acompanhadas duma outra jovem loura e alva de rara formosura. Depressa reconheceram nela a infanta D. Tareja, filha bastarda do rei Afonso e de D. Ximena Moniz, a já falecida irmã de D. Gontrode.

    A tia Gontrode tinha tratado da real sobrinha como uma mãe e agora a formosa princesa Tareja (Teresa), já com dezoito anos, partiria, no dia seguinte, ao alvorecer, para Zamora, para o castelo da tia Urraca, irmã do rei D. Afonso VI e depois seguiria para Leão, acompanhada da tia e do primo Mendo Soares, com um séquito reforçado pelos homens dos Braganções que os aguardam em Terras de Miranda. Teresa, agora de maioridade, teria de assumir o seu papel de infanta, filha do rei Afonso VI de Leão e Castela, o Imperador a quem reis cristãos e mouros prestavam vassalagem. A corte sediada em Toledo, desde a sua conquista em 1085, estava agora em Leão, sua antiga capital, para assistir às exéquias fúnebres da falecida rainha D. Constança que ia ser sepultada, no mosteiro de Sahagún2, perto de Leão.

    Seria em Leão que a infanta Teresa conheceria o conde D. Henrique de Borgonha que vinha a caminho, como já nos referimos, para assistir ao funeral de sua tia Constança, irmã de seu pai, o duque de Borgonha. Ficaria depois, com os ricos-homens, infanções e cavaleiros que o acompanhavam para auxiliar o rei Afonso, seu tio, e o seu parente Raimundo, na luta que travavam contra os almorávidas de Fez.

    À entrada da torre, D. Gontrode, os filhos Aurvelido, Goda e a cunhada D. Urraca Teles, beijam as mãos à tia Ermesenda e abraçam D. Maior. A jovem Teresa fica queda junto ao umbral da porta e Ermesenda e a sobrinha, surpreendidas por aquela formosura já adulta e altiva, hesitam, sorriem para ela e fazem uma pequena vénia, dobrando levemente o joelho mas a infanta não as deixa continuar, corre para elas e, sorridente, abraça as duas religiosas efusivamente. Sempre gostou das “tias santas da Maia”, que lhe contavam lindas histórias quando criança, sempre que vinha àquele Paço e, embora não as visse desde a sua adolescência, não as esquecera.

    D. Maior dirige-se então às cunhadas, pergunta pela mãe e entra na torre com ligação ao corpo principal do solar e vai direita aos aposentos de sua mãe que jazia, enfraquecida, com a cubiculária ou açafata (criada de quarto) sentada ao lado do leito. Ermesenda segue-a com as sobrinhas, pois também está preocupada com a sua amiga e cunhada que muito sofreu com a morte violenta de mano Mendo, pelos golpes de alfange do traiçoeiro sarraceno. Ledegúncia, pálida e dormente, pouco falou. Olhou vagamente para a filha e a cunhada, parecia querer esboçar um sorriso, mas voltou à letargia em que se encontrava.

    Era preciso fazer algo para salvar a mãe e Maior e Ermesenda tudo fariam, com a ajuda de Deus e dos conhecimentos que tinham adquirido na vida monástica. Ermesenda lembrou-se de ouvir seu pai falar no Abdallah, o físico mouro do avô Trastemiro, que fugiu com as tropas de Almançor e que possuía artes de curar a mais terrível das doenças.

    1 Seria o antigo castro de Avenoso, no monte de Santo Ovídio (Castêlo da Maia), mais tarde Castelo de Sancta Maria de Avyosso, conquistado aos mouros, em meados do Séc. X, pelo patriarca dos da Maia, Aboazar Lovesendes ou Ramires, pois dizem ter sido filho do rei Ramiro II de Leão e da moura Zara (Abu Zara) do castelo de Mafamude, em Gaia, que ele também conquistou juntamente com o de Gondemar. Também se diz que existiu um Paço ou Castelo, no Alto da Maia (Quinta do Castelo?) que pertenceu aos Senhores d’Amaia. Tanto a origem dos da Maia como a localização do seu Paço, aliás como tudo o que era daquela conturbada época, está ainda cheio de brumas, pois documentos poucos mais existem do que os preservados em catedrais, igrejas e mosteiros que foram muito danificados e até arrasados pelos ataques sarracenos e normandos dos Séc. X e XI.

    2 Naquele antiquíssimo e nobre cenóbio de Sahagún, após a sua morte, em 1109, o próprio rei Afonso VI teria o seu túmulo, ao lado das suas três mulheres cristãs, pois a moura Zaida, mãe do seu único filho varão, Sancho e nora ou filha do rei mouro de Sevilha que lhe pediu asilo, após o ataque dos almorávidas, conforma os usos da sua Fé, seguiria para o Céu de Alá, Paraíso de Mafoma, onde, para muitos dos seus crentes, as dúbias almas femininas não tinham lugar.

    Por: Reinaldo Beça

     

     

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