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    Arquivo: Edição de 30-07-2005

    SECÇÃO: Crónicas


    “Pela boca morre o peixe”

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    O agricultor transmontano é dos que sujam as mãos na terra e as enfeitam de calos, unhas negras e rachadas; que têm a pele crestada pelos humores do ar serrano e os músculos enrijecidos pelo esforço empregado, dia a dia, hora a hora, na luta contra a dureza da mãe natura; que se diverte em exercícios de valentia, atirando o ferro ou a pedra à distância, jogando os paus, substituindo, momentaneamente, os bois ou as vacas a puxar os carros por aposta ou tradição inspirada num passado guerreiro; que se alegra quando o cereal viceja após o duro Inverno ou quando as espigas enlourecem vergadas ao peso dos grãos e choram por dentro sempre que o granizo ou a geada, a trovoada ou o fogo lhes transformam os sonhos em horrendos pesadelos.

    Em geral, este homem é menos zeloso consigo próprio do que em relação aos seus animais, alfaias agrícolas e outros utensílios de trabalho, porque lhe garantem a difícil subsistência e neles gosta de projectar a sua imagem. É capaz de perdoar mais facilmente se alguém prejudicar as culturas que lhe dão alimento do que se lhe desviarem a água dos lameiros, indispensável à engorda dos quadrúpedes, como se prova pelas agressões e até homicídios cujo móbil é a questão da partilha das águas. É vê-lo, ao domingo ou em breves momentos de pausa, a limpar molidas, cornais, sobeios e a ensebá-las, não apenas para conservação do couro mas, antes de tudo, para terem melhor aspecto; a picar, afiar e untar cuidadosamente gadanhas e foices, no fim do Outono, para que estejam em bom estado logo que seja preciso cortar ferrã ou erva primaveris e o feno ou o cereal à entrada do Verão; a limpar e guardar a charrua no palheiro, onde existem espaços adaptados a cada um dos utensílios. Mas o porta-estandarte do homem do campo é o seu carro. Animais de boa estampa e alfaias bem tratadas exigem um carro de porte fidalgo e voz de tenor. Pintura revista nas partes exteriores, rodas bem ferradas e cravadas, treitouras afinadas como se fora um violino, para que o eixo, ao girar, produza um som melodioso, eis as essenciais preocupações do lavrador de Trás-os-Montes.

    DEITADO

    SOBRE A AIXEDA

    Conciliar tradições, por vezes antagónicas, é um exercício complicado que, não raro, conduz a desenlaces dramáticos. Em muitas aldeias havia o costume de, em determinada noite do ano, os rapazes sequestrarem um carro de bois, puxarem-no caminho acima em direcção à serra e, uma vez ali, escolherem uma touça, onde cortavam carvalhos até o encherem e aí vinham eles, em sentido inverso, procurando, agora, segurar o carro e reentrar no povo fazendo o mínimo de ruído possível. No dia seguinte, a lenha era arrematada em hasta pública e o produto revertia para uma das mordomias religiosas da terra.

    Em Penhas Juntas faziam-no na noite que antecede o Dia de Todos os Santos. Combinavam a hora para se encontrarem e os líderes decidiam, então, qual seria o carro a sequestrar. Ainda que a decisão já estivesse tomada e muitos soubessem qual seria a vítima, ninguém “furava” o pacto de silêncio.

    Ora, o Manuel “Cesílio” era um daqueles agricultores prezados e orgulhosos quanto ao aspecto dos seus pertences. Não teria ainda trinta anos mas já estava casado e possuía uma boa casa de lavoura. Não havia carro mais estimado em toda a povoação e dizia a quem o quisesse ouvir que jamais permitiria que lho levassem. Como “o proibido é o mais apetecido” e o desafio era aliciante, naquele ano foi a ele que coube a sorte. Ao início da madrugada, cosidos às sombras das casas, os rapazes confluíram para o curral onde sabiam que estava o carro. Munidos de machados, machadinhas e cordas, descaravelharam a porta carral e foram entrando. À luz vaga do lampião, que ficara no exterior, depararam surpresos com o Manuel, deitado sobre a aixeda dormindo a sono solto. Houve um momento de perplexidade, mas logo o Alcino do tio Zé Malhadas, como general em campo de batalha, por gestos, deu indicação para se reunirem lá fora e, ali mesmo, decidiu como proceder:

    – Desapertam-se as treitouras e, enquanto alguns suspendem a aixeda, outros retiram o eixo e as rodas. Depois, um grupo leva a aixeda com o João, mais os estadulhos, outro carrega o eixo e as rodas.

    Com extremo cuidado executaram o plano e puseram-se a caminho. O Manuel, sem querer, fez uma dupla viagem: fisicamente foi levado em ombros, como um rei antigo na sua liteira; em sonho talvez se tenha imaginado um D. Quixote em luta contra inimigos sem rosto. Todavia, desta vez, a realidade foi muito além da imaginação.

    Chegados ao local escolhido, recompuseram o carro. O nosso homem continuava a dormir bem aconchegado no cobertor em que se envolvera, que a madrugada estava fria Os rapazes acharam que já era tempo de porem fim à situação criada até porque ele teria forçosamente de acordar quando os machados entrassem em acção.

    Como é natural em tais situações, o Manuel demorou a compreender o que fazia, no alto da serra, em campo aberto e cercado de caras bem conhecidas. Nunca lhe teria passado pela cabeça uma tal possibilidade.

    – Como é que fizeram tudo isto sem eu dar fé? – perguntou, ainda meio estremunhado.

    – Vossemecê tem o sono mais pesado que as penhas juntas! –, cascalhou o Chico da Maria Venância, um rapazote de dezasseis anos.

    – Pois pregastes-ma bem pregada. Pronto, ganhastes. Andai lá! Arranjai-me aí um machado que eu também quero ajudar.

    Rindo e cantando, em pouco tempo, a rapaziada, Manuel incluído, cortou lenha suficiente para encher o carro, fazendo o caminho de regresso até à aldeia. No dia seguinte toda a gente reinou com a história e o Manuel tornou-se um dos protagonistas da crónica humorística da terra.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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