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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 30-04-2005

    SECÇÃO: Crónicas


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    Comunhão

    Num tempo de emoções voláteis, de amizades pífias e interesseiras, de amores fátuos como balões de festas populares, é reconfortante constatar a persistência de sentimentos nobres, daqueles que, no silêncio e na humildade de um coração, encontram as condições ideais para se manterem vivos. Essa chama consegue, às vezes, resistir ao passar dos anos, ao desaparecimento físico das pessoas que a inspiram, ao olvido geral e à distanciação que propicia o relaxe quase inconsciente da vontade.

    – Um pai-nosso por alma do Senhor Padre Baptista – encomenda ao pároco a menina Perpetuinha, veneranda anciã para cima dos 80, em Dia de Responsos.

    E já vai em perto de seis décadas este pedido, que ano a ano se repete, na presença de muito povo que da pessoa sufragada tem apenas vagas referências feitas por pais ou avós. Não obstante o desconhecimento, tomam parte na homenagem por se tratar de alguém que fez parte das vivências dos mais idosos.

    Era eu muito criança quando aquele jovem sacerdote foi pároco da aldeia onde me criei. Dele guardo uma vaguíssima lembrança: um homem de estatura média, envergando cabeção e batina – ainda eram obrigatórios esses hábitos –, de uma simpatia espontânea e cativante. Nenhum outro traço fisionómico, nenhuma história em que tivesse intervindo. Duvido até que esses fiapos de memória sejam de impressão directa, que não resultem de conversas ouvidas em família nos tempos subsequentes ao seu trágico desaparecimento.

    A DESDITOSA

    NOTÍCIA

    Ilustração: Rui Laiginha
    Ilustração: Rui Laiginha
    A notícia foi tão violenta que alguns a tiveram por absurda. Como podia uma coisa daquelas entrar na cabeça de pessoas habituadas ao pacato transcurso dos dias, preenchidos com trabalhos agrícolas e o ciclo natural da vida na alegria dos nascimentos e das festas, no envelhecimento gradativo e na morte sempre dolorosa mas que acontecia, por regra, num cenário familiar? Os veículos a motor, actualmente na origem de tantas perdas de vidas humanas, estavam ainda arredados desse ambiente bucólico e previsível. As viagens faziam-se a pé ou em lombo de jumento, de cavalo ou de mula, que jamais se admitiu serem susceptíveis de provocar quedas fatais.

    Pois o Senhor Padre Baptista morreu arrastado pelo próprio cavalo quando, montado, regressava a casa. Fora buscá-lo ao lameiro, pusera-lhe o selim, atara as rédeas ao pulso esquerdo e dessa maneira o guiava, enquanto ia rezando o breviário, seguro na sua mão direita. Por que razão teria o animal largado a correr, derrubando o cavaleiro e arrastando-o por sobre pedras e arbustos, fora do caminho que costumava seguir, nunca foi possível determinar com exactidão. Uns diziam que tinha sido picado por vespas, outros que um súbito impulso sexual o teria feito seguir no encalço de uma fêmea no cio, outros ainda que, inadvertidamente, o cavaleiro fizera algum movimento capaz de assustar o equino. Certo foi que a vítima não conseguiu libertar o pulso da rédea que nele tinha prendido. Quando alguém, enfim, susteve a louca correria do bicho, nada mais podia ser feito pelo desditoso sacerdote.

    A EVOCAÇÃO

    LATENTE

    O acidente ocorrera numa povoação próxima, onde o padre tinha residência, mas pouco tardou que todos soubessem da tragédia nas aldeias em redor, provocando tal consternação que muitos suspenderam o trabalho e puseram-se a caminho para lhe prestarem homenagem. Além de pastor de almas, era também um homem de raras qualidades no convívio com os seus semelhantes. Gostava de estar ao lado dos paroquianos, de participar nos jogos da rapaziada, de brincar com as crianças. Tinha sempre a palavra adequada à situação de cada homem ou mulher que encontrava, não se esquecia de perguntar pelos doentes, pelos que andavam fora a ganhar o sustento da família, procurava congraçar os desavindos, promovia o bom entendimento nas triviais desavenças de vizinhos.

    Assim falavam os meus pais em consonância relativamente a quantos o conheciam. O tempo, porém, vai operando na memória um desgaste semelhante ao que o vento e a areia produzem nas inscrições que os nossos antepassados imprimiram nas pedras. As manifestações públicas rarearam, só de longe em longe alguém aludia ao sucedido, embora estivesse profundamente gravado na mente de muitos coetâneos. Mas, como tantos outros eventos passados, dormia esquecido no arquivo das antiguidades, tornando-se motivo de evocação apenas quando associado a qualquer facto determinante na vida de alguém:

    – Olha, isso foi no ano em que morreu o Senhor Padre Baptista – diziam, baixando a voz em sinal de respeito.

    Para a menina Perpetuinha sempre esteve presente a lembrança daquele homem de Deus como se de um familiar próximo se tratasse. No bom lugar que certamente ocupa, se "memória desta vida se consente", há-de lembrar-se de que, num pontinho minúsculo do planeta, que não consta em qualquer mapa, ao menos uma alma permanece em comunhão com a sua e um dia hão-de encontrar-se para além da efemeridade terrena.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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