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    Arquivo: Edição de 31-03-2020

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    ARTIGO ESCRITO PELO CIENTISTA ERMESINDENSE JOÃO CARLOS TEIXEIRA

    A ciência de uma pandemia

    João Carlos Teixeira é um cientista português especialista em Genética e Evolução da espécie humana. Nascido na freguesia de Santo Ildefonso, no Porto, mas com fortes raízes na cidade de Ermesinde, onde cresceu e viveu até aos 24 anos de idade, completou a Licenciatura em Biologia (2009) e o Mestrado em Genética Forense (2011) na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Em 2011 mudou-se para a Alemanha, onde obteve o Doutoramento em Genética Evolutiva Humana no prestigiado Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology, em Leipzig. Trabalhou durante um ano como cientista pós-doutorado no conhecido Institut Pasteur, em Paris, de onde se mudou no início de 2018 para a Universidade de Adelaide, na Austrália, onde reside actualmente.

    Aqui fica, nas próximas linhas, o seu artigo.

    Vivemos tempos conturbados. Um inimigo invisível ameaça a vida de centenas de milhares de pessoas em todo o Mundo e foi já responsável pela transformação completa do nosso quotidiano e, possivelmente, daquilo que será a nossa vida no futuro próximo. O perigo associado à pandemia que hoje vivemos, com a disseminação exponencial do novo coronavírus, conhecido como SARS-CoV-2, é muito provavelmente a maior crise de saúde pública do último século. No entanto, esta crise apanhou o mundo desprevenido, liderado por políticos que colocam constantemente a ciência em segundo plano e questionam os seus resultados em favor de agendas políticas e económicas. Vivemos numa altura em que a ciência, apesar de maioritariamente financiada por dinheiro público, continua a ser vista como algo ao alcance apenas de um pequeno conjunto de indivíduos. Tal não poderia estar mais longe da verdade, e a nossa saúde, e a dos nossos familiares e amigos, depende agora da nossa capacidade de compreensão científica sobre esta pandemia.

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    Na altura em que vos escrevo estas palavras existem já mais de 500 mil pessoas infectadas com o vírus SARS-CoV-2, que foi também responsável por mais de 24 mil mortes em todo o Mundo. Em Portugal, os números têm crescido de forma exponencial nas últimas semanas, e contabilizamos já 4 268 casos e 76 mortes (Nota: este artigo foi-nos enviado a 27 de março, pelo que já hoje, 28 de março, a DGS atualizou estes números, havendo agora 5170 casos e 100 mortes a registar no nosso país). Quando ler estas minhas palavras, é extremamente provável que existam já milhares de casos adicionais confirmados e também mais algumas centenas de mortos globalmente. Esta é uma crise sem precedentes desde a designada Gripe Espanhola que ocorreu há cerca de 100 anos e ceifou a vida de entre 30 a 50 milhões de pessoas. Ao mesmo tempo, abundam notícias falsas, introduzidas através de meios de comunicação massivos, como as redes sociais, de forma irresponsável e muitas vezes propositada. Para ultrapassarmos esta crise é preciso conhecer o nosso inimigo e a forma como ele actua.

    SARS-CoV-2 vs COVID-19

    Comecemos pelo mais básico, a nomenclatura.

    SARS-CoV-2 é o nome dado ao novo coronavírus, um acrónimo que deriva do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome, Coronavirus 2. Em português, isto significa “Síndrome Respiratória Aguda Severa, Coronavírus 2”. O nome deriva então da síndrome causada, que pode levar a complicações respiratórias graves e pneumonia. O número 2 refere-se ao facto de esta ser a segunda estirpe de coronavírus a resultar numa epidemia, depois do SARS ter atingido, principalmente, a Ásia em 2003.

    Pelo contrário, o acrónimo COVID-19 refere-se à doença causada pelo SARS-CoV-2 – Coronavirus Disease 19, que em português significa “doença por coronavírus”. O número 19 deriva do seu ano de origem, 2019.

    Agora que percebemos as diferenças na nomenclatura, qual é a verdadeira origem do SARS-CoV-2? Este tema continua a ser alvo de aceso debate nas redes sociais, havendo mesmo quem defenda que terá sido criado em laboratório pelo governo Chinês, ou Americano, de forma a que possam ser retiradas vantagens geopolíticas. A verdade é que, cientificamente, tal não passa de imaginação fértil. Segundo um artigo recentemente publicado na revista Nature Medicine, a origem do SARS-CoV-2 é muito provavelmente zoonótica (em ciência não se usam termos como certeza ou impossível), isto é, deriva de outros animais. Apesar de ser ainda debatida qual a espécie animal em concreto, os resultados que comparam a estrutura proteica do vírus que se liga aos receptores humanos apontam como origem provável uma estirpe de coronavírus que infecta pangolins, mamíferos que habitam as zonas tropicais da Ásia e de África.

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    Não existem, assim, razões válidas para acreditar que este coronavírus foi produzido num qualquer laboratório com intervenção humana. Esta falsa informação, sempre que propagada, poderá ter consequências desastrosas para o normal funcionamento da nossa sociedade global. É particularmente grave que esta noção seja indirectamente disseminada por alguma comunicação social sensacionalista, que insiste em chamar ao SARS-CoV-2 o “vírus da China”. Ainda que seja essa a sua origem geográfica, tal nomenclatura é hoje veementemente rejeitada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

    CRESCIMENTO EXPONENCIAL, IMUNIDADE E EVOLUÇÃO DO SARS-COV-2

    Agora que o SARS-CoV-2 se encontra já espalhado pelos quatro cantos do Mundo, importa perceber o porquê da sua disseminação e crescimento exponencial. Em primeiro lugar, por se tratar de um vírus novo em humanos, é expectável que a vasta maioria da população não lhe seja imune. Por outro lado, é crucial referir que, devido a um período de latência que, segundo alguns estudos, pode chegar aos 21 dias, uma pessoa infectada pode fazer a sua vida normal durante semanas. Durante todo este tempo, colocou em risco de infecção, acidentalmente, várias pessoas com as quais contactou. As mais recentes estimativas para a taxa de transmissão do SARS-CoV-2, conhecida como R, é ligeiramente superior a 2. De forma simplificada, isto significa que cada pessoa infectada transmite o vírus, em média, a pelo menos outras duas pessoas.

    Este processo resulta naquilo que é vulgarmente conhecido como crescimento exponencial. Quanto maior o número de pessoas infectadas hoje, muito maior será o número de pessoas infectadas amanhã. Se não forem implementadas medidas de isolamento e distanciamento social, o resultado prático desta dinâmica de crescimento explosivo com a falta de imunidade na população é a infecção da maioria dos indivíduos de uma população.

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    Mas existe ainda um outro problema, quiçá mais grave. De cada vez que o código genético do SARS-CoV-2 é copiado, existe a possibilidade de ocorrerem mutações que levem a uma muito maior virulência e mortalidade na espécie humana. Por outras palavras, quanto maior o número de pessoas infectadas, maior a probabilidade deste coronavírus se tornar ainda mais letal, para um maior número de pessoas. Apesar das estimativas da taxa de mutação de SARS-CoV-2 apontarem para que a mesma seja mais baixa do que a do vírus da gripe, o seu crescimento explosivo a nível mundial faz com que esta deva ser uma preocupação prioritária à escala global.

    ESTRATÉGIAS DE CONTENÇÃO - A NECESSIDADE DE GANHAR TEMPO

    Face ao exposto, torna-se então imperativo conter esta pandemia. O maior problema, que tem sido frequentemente abordado pela comunicação social em Portugal, prende-se com a potencial falta de capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS) no caso de existirem várias dezenas de milhares de pessoas infectadas ao mesmo tempo, como sucede em Itália, Espanha ou EUA. Considere o leitor, durante um momento, o que seria de Portugal sem um SNS público face a esta pandemia – vale a pena reflectir face ao que alguns dos nossos políticos propuseram nas últimas eleições legislativas – a ausência do SNS resultaria numa tragédia!

    A sobrecarga do SNS leva a que existam, potencialmente, centenas ou milhares de mortes evitáveis em Portugal (no plano global este número pode ascender às centenas de milhares, ou até mesmo milhões). Os hospitais ficam sobrecarregados e não existem mecanismos para responder a tantos pacientes infectados, os profissionais de saúde adoecem e são obrigados a ficar em isolamento, pacientes com outras comorbilidades não podem ser atendidos e perdem a vida, indirectamente, devido à pandemia. Os idosos mais vulneráveis não recebem equipamento auxiliar (como ventiladores) e são deixados à mercê do seu já débil sistema imunitário, exacerbado por comorbilidades existentes. Os doentes em maior risco são preteridos para que se salvem pessoas mais jovens, em teoria com maior saúde e probabilidade de sobrevivência. Em suma, milhares de pessoas perdem a vida desnecessariamente.

    Na ausência de uma vacina ou tratamento eficazes (já lá vamos), e devido ao facto de não existir imunidade de grupo, existe apenas uma forma de prevenir que tal aconteça: evitar todo e qualquer contacto desnecessário com outras pessoas. Para tal, é preciso permanecermos em casa sempre que o pudermos fazer. A alternativa, defendida ainda que de forma tímida por alguns líderes mundiais, é infectar propositadamente a população de forma a que, virtualmente, todos os sobreviventes tenham imunidade, alcançando-se assim a referida imunidade de grupo. Leu bem, esta política é defendida por alguns líderes mundiais. Ora, num cenário destes, e como já percebemos pelo que escrevi acima, a probabilidade de se perderem milhares de vidas desnecessariamente é bastante mais elevada.

    O FUTURO PRÓXIMO

    Esta será, muito provavelmente, a nossa realidade durante semanas, talvez meses. Permanecer em casa e evitar ao máximo contactos sociais. Como não sou epidemiologista, não me irei debruçar sobre números em concreto nem qual a expectativa em termos temporais. A estratégia defendida pela maioria dos meus colegas, contudo, parece ser a de se conter a pandemia numa fase inicial, diminuir drasticamente a taxa de propagação do vírus e identificar posteriormente os novos casos pontuais, que surgirão cada vez em menor número depois da fase explosiva inicial. Esta estratégia é comum em países asiáticos como a China, a Coreia do Sul, o Japão, ou Singapura. E os resultados estão à vista: todos estes países têm, neste momento, o surto controlado. Wuhan, a cidade chinesa epicentro desta pandemia, onde habitam cerca de 11 milhões de pessoas, à semelhança de Portugal, tem voltado gradualmente à normalidade nos últimos dias.

    No caso português, e na eventualidade das medidas de distanciamento social impostas pelo governo, em conjunto com a declaração do estado de emergência anunciado pelo Presidente da República, serem eficazes, poderá ser esta a nossa realidade dentro de algumas semanas, talvez 2-3 meses (faço notar que o isolamento total de Wuhan ocorreu a 23 de Janeiro e a vida voltou a uma relativa normalidade na passada semana, cerca de 2 meses depois). Será assim um ano de 2020 em que seremos forçados a adaptar-nos a uma vida diferente, de maior contenção nos contactos sociais, mesmo depois de termos o surto sob controlo.

    Finalmente, depois de ganharmos o tempo necessário para conter o avanço deste inimigo, poderemos atacá-lo de forma directa. Existem já mais de 1000 artigos científicos sobre a actual crise epidemiológica causada pelo SARS-CoV-2. Enquanto cientista, nunca assisti a tão concertado esforço por parte da comunidade científica mundial. Os cientistas constituem neste momento a terceira barreia no ataque ao coronavírus, a seguir a todos os cidadãos do Mundo e aos profissionais de saúde a lutar no terreno, e serão eles a desferir o golpe fatal no inimigo.

    Saber-se-á mais sobre o SARS-CoV-2 do que qualquer outro vírus, em tempo recorde. Serão desenvolvidos tratamentos cada vez mais eficazes ao longo dos meses e, daqui a mais algum tempo, surgirá uma vacina. Até lá, temos de ser pacientes. Uma vacina não surge de um dia para o outro e existem importantes limites tecnológicos e éticos a ser considerados. Mas chegará.

    O meu desejo é que, depois de vencida a guerra, sejamos mais unidos enquanto espécie, em todos os cantos do Mundo. Que possamos perceber que a crise que nos atingiu não tem nacionalidade nem distingue credos, estatuto sócio-económico ou preferências partidárias. Que nos seja não só perceptível a importância dos nossos profissionais de saúde, mas também de todos aqueles que nos prestam serviços diários, dos que trabalham nos mercados aos que nos recolhem o lixo.

    E que nos seja finalmente possível entender que a ciência é de todos, e para todos.

    JOÃO CARLOS TEIXEIRA

    Nota: João C. Teixeira escreve segundo a ortografia antiga.

     

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