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    Arquivo: Edição de 30-09-2018

    SECÇÃO: Crónicas


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    Pertinho do céu

    A uma dada altura uma amiga não sabia o que fazer com os pequenos rascunhos apontados em blocos de notas, restos de agendas, folhas coladas com fita adesiva e papeis soltos. Tudo "escritos" que ao longo dos anos tinham escapado às mãos traquinas das crianças. Eram apontamentos feitos pela mão da sua avó, que recentemente tinha falecido, com 93 anos. Leu-os na forma como se encontravam - dispersos. Não lhe faziam sentido só que no seu íntimo, sentia que naquilo tudo tinha que haver algum sentido.

    Tentar compreender e enxergar o que está para lá da perceção comum, enxergando com o coração é para mim um desafio daí que tive o privilégio de ela me confiar esta tarefa - tentar construir uma história, ligando estes bocadinhos de texto, alguns deles coloridos por desenhos feitos pela sua mão.

    Comecei por pegar num pequeno livro de apontamentos com capa feita com cartão canelado que continha no seu interior pequenas folhas em papel mata-borrão e preso a cordel. Aqui, podia ler-se na primeira página: "Era uma vez uma velhinha que tinha uma neta muito linda com o cabelo muito lourinho todo aos caracóis e que a sua avó levava a passear". Quando comecei a tentar ligar as pontas soltas destes apontamentos certo é que, da metodologia usada para tentar dar sentido a tudo o que não dava ideia de fazer sentido, somaram-se 177 páginas de texto em formato A4 e que serviram de rascunho manuscrito com a reprodução integral de tudo o que tinha sido escrito por uma mulher de 1919.

    Ao alinhar tudo por ordem cronológica, percebi que afinal toda a história já tinha sido escrita por ela mesma. Com termos invulgares para uma mulher do início do século XX, deu para perceber que ela não pertencia ao grupo dos iletrados do seu tempo, muito pelo contrário, estava bem patente o facto de ter passado pelo rigor de "mestras freiras" tal como espelhava a forma e os termos que desenvolvia na sua escrita.

    Ilustração NG
    Ilustração NG
    Limitei-me a tentar pontuar as frases e somente trocar algumas palavras que facilitasse o entendimento na sua leitura. Nada mais me atrevi a fazer pois isso seria como mutilar a alma desta mulher que se encontrava naquelas linhas e entrelinhas. A uma dada altura pode ler-se "…escrevia conforme me sentia e isso fazia-me sentir melhor...". Percebi também através da sua escrita que a tinham magoado ao darem mau uso aos seus "desabafos". Terá sido por isso que passou a fazê-los através da escrita, que ela sente "…não a deixa ficar mal".

    Pela riqueza de conteúdo que este acervo teve para a sua família senti-me à vontade para achar ser de menor importância que alguma data pudesse estar imprecisa. O essencial foi ficar a perceção de que ela sabia muito bem o que queria dizer e transmitir com estas reflexões que escrevia. Foi isso que contou no compêndio (entregue nas mãos de quem me tinha honrado com esta tarefa), feito em memória de uma mulher, que nos toca nesta leitura em aspetos tão elevados e intrínsecos como o amor que tinha pela sua família.

    Ela achava que era "ninguém" daí que "…a ninguém isto iria interessar…", conforme escreveu a uma dada altura no canto de uma pequena sebenta. Atrevo-me a pensar que no interior do seu sentir ela esperava que a alguém isto pudesse um dia interessar. Assim e em sua homenagem a neta (agora mulher mas que ela tinha criado junto a si desde pequenina), em representação de todos os netos e descendentes, decidiu fazer cópia deste compêndio para entregar a cada um dos filhos desta grande senhora de estatura franzina, que ela tanto amava. A recomendação era que fosse lido no seu todo e isto porque algures cada um encontraria um pedacinho de si.

    Ao voltar a colocar na caixa todos os papelinhos, cadernos e sebentas, uma certeza se apoderou de mim: um dia, existiu uma mulher que de forma humilde e sofrida amava a sua família, amava Deus, amava a harmonia e a paz. O que me impressionou em todo este trabalho foi que com todas as dificuldades, agruras, perdas e sofrimento por que passou transcrevi lamentos ou até mágoas mas o que nunca, mas nunca terei encontrado foi um sentimento de rancor, de inveja ou mesquinhez, mesmo perante quem lhe tenha causado dano, acima de tudo na alma.

    Foi também muito gratificante perceber o quanto pequenas coisas a fizeram sentir tão feliz e grata e isto na palavra "obrigado", que não se cansou de escrever. "Pertinho do céu", era uma dessas pequenas mas tão grandes emoções. Por exemplo, era assim que se sentia no seu campismo, conforme li algures entre papéis.

    Certo é que ao dar por findo o meu contributo neste trabalho, senti que com a sua partida ela terá completado a sua viagem, chegando finalmente ao céu. Lá, terá encontrado o seu Deus - aquele que ela sentia tudo compreender. Por conforto, adotei a sensação apaziguadora de sentir que estava feliz e em paz, por também ter percebido que afinal o seu legado importou: uma grande história de amor, coragem, ternura, dedicação e entrega aos outros, que deixou como testemunho, na forma de escrita.

    Por: Glória Leitão

     

     

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