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    Arquivo: Edição de 31-12-2017

    SECÇÃO: Crónicas


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    Até onde pode chegar a excentricidade

    As idílicas margens do Leça exerceram, de longa data, enorme fascínio sobre a abastada burguesia do Porto. Ao mesmo tempo que a Revolução Industrial se afirmava criando novas fábricas e o comércio se expandia e prosperava, cresciam os apelos da Natureza, as saudades do campo e da vida simples que a memória guardava e estimulava. A lembrança, ainda que apenas imaginada, de um rio a gorgolejar, o viço dos prados que dele recebiam a necessária frescura e as árvores que propiciavam sombras protetoras eram poderoso e revigorante estímulo para quem vivia num meio urbano exigente e repetitivo. Logo que o tempo o permitisse, as famílias buscavam no campo algumas horas de repouso e descontração. Ao domingo, depois de ouvirem missa nada melhor do que buscarem, para lá do bulício da urbe, a tranquilidade do campo sem necessidade de cansativas deslocações. De véspera ou bem cedinho pela manhã, as criadas preparavam a merenda familiar para um dia cheio; algum tempo antes de saírem, os criados davam de comer aos animais que haviam de transportar os patrões, seus familiares e, de passagem, algum amigo(a) mais próximo(a) e, quando tudo estivesse a postos, demandavam o lugar mais aproximado do rio fosse no termo de S. Lourenço de Asmes, (Ermesinde, a partir de 1910,) ou de alguma das numerosas povoações que hoje pertencem aos concelhos da Maia ou de Matosinhos. Chegados ao local escolhido, desatrelavam-se os animais de tiro e as criadas acompanhavam as crianças a banhos nas águas límpidas do rio. Mais tarde, próximo da hora de almoço, começavam a instalar, na área escolhida, o farnel da família, tempo em que os seus patrões cumprimentavam amigos ali chegados com idêntico propósito e mantinham entre si animadas conversas sobre o andamento dos negócios, notícias correntes na sua cidade ou ecos da capital. Esta forma de passar o domingo era adequada à primavera ou ao verão. No outono ou no inverno, os programas familiares dos domingos, dias santos e feriados eram necessariamente diversos incluindo convites a famílias amigas para almoçar ou jantar e idas ao teatro ou a concerto musical.

    Já na segunda metade do século XIX, a prosperidade fez com que muitas famílias de elevados rendimentos adquirissem grandes parcelas de terreno em localidades próximas dos seus locais de eleição, que cercavam de muros e onde mandavam construir casas apalaçadas e, adjuntas, construções mais modestas para os trabalhadores necessáriosao cultivo das terras. Assim foram surgindo muitas quintas próximas da estrada que do Porto se dirigia para norte. Os proprietários ocupavam-nas em seus dias livres, ficando, depois, entregues a caseiros que cuidavam das terras e mantinham a "casa grande" em boas condições de habitabilidade e de uso frequente.

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    Numa dessas quintas, muito conhecida ainda em nossos dias, habitavam já a terceira ou a quarta geração dos fundadores na época a que os factos narrados se referem. Embora prenunciando a decadência, os moradores faziam questão de manter estatuto e comportamentos adequados à classe social a que pertenciam. A família de um dos herdeiros vivia ali enquanto irmãos e primos vinham, de quando em vez, passar fins-de-semana ou parte das férias escolares dos mais novos. Nessas alturas os jovens estudantes, apartados de amigos habituais, procuravam divertir-se nem sempre dentro dos parâmetros admitidos pelos mais velhos. Ora prejudicavam as plantações do caseiro, ora perseguiam gatos e cachorros chegando a extremos de os matarem e atirarem para os caminhos que ladeavam a quinta. Os moradores das casas vizinhas protestavam mas de pouco lhes serviam as queixas porque "os meninos" ouviam as reprimendas dos pais mas "faziam ouvidos de mercador" logo buscando novas formas de diversão, fossem ou não bem aceites pelos mais crescidos. Noutras ocasiões, muniam-se de pequenos seixos que atiravam para a estrada espreitando pelo buraco da fechadura do portão as reações de quem passava. Numa dessas ocasiões, não calcularam bem o tamanho de uma pedr(inha) que foi embater no para-brisas de um táxi que passava na estrada. O motorista, procurou saber donde viera o "tiro" e, sem dificuldade, encontrou uma testemunha visual que o incentivou a bater ao portão da quinta. A rapaziada tinha-se eclipsado mas um dos moradores adultos ouviu a queixa do taxista e prontificou-se a compensar-lhe o prejuízo pela importância exigida. Esta e outras "façanhas" ouvi-as do João Paulo um dos rapazes a quem eu dava explicações. Mostrei-lhe a minha reprovação face a tais cometimentos e a sua resposta surpreendeu-me:

    - Ó professor, os ricos têm o direito de ser excêntricos.

    Respondi-lhe que tudo tem limites, que a sociedade estabelece esses limites por meio de regras (leis) a que todos, ricos ou pobres, devem obedecer. Convencido ou nem por isso, espero que a vida lhe tenha confirmado a justeza do meu parecer.

    Por: Nuno Afonso

     

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