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    Arquivo: Edição de 20-10-2017

    SECÇÃO: Crónicas


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    Por trás da urna

    Confesso que não contava com aquele convite, feito de forma espontânea: "dia 1 de outubro, quer ir para uma mesa de voto?". Fiquei meio aparvalhada e tentei processar a questão da forma mais rápida que podia - sentia merecer o respeito das pessoas que me formalizavam o convite; pela primeira vez e de há muitos anos a esta parte senti ter chegado o momento de pousar a armadura (estava "em casa") daí o sentir-me fazer parte da terra onde vim ter; não conseguia desligar o interruptor mental da aprendizagem e terá sido esta a mola que me levou ao SIM, com todo o gosto.

    Nunca digas nunca. E nunca pensava eu algum dia ficar atrás de uma urna. Já a palmilhar a reta dos cinquenta (mas novata nestas andanças), precisava participar de reunião onde me seriam explicadas as tarefas que me competiam como escrutinadora bem como esclarecer qualquer dúvida que me surgisse. Quando também nunca pensando que alguma vez entraria numa sede partidária, eis que senão, no meio de algumas dezenas de pessoas, de repente me lembro de Olinda, a mulher enorme que na década de setenta me oferecia o lugar de secretária na área de Recursos Humanos de uma grande escola, como eram todas as metalúrgicas.

    Creio que todos nós ficamos com a alma gravada por alguém que nos influencia a aprendizagem ao ponto de moldar características da nossa personalidade. Como minha primeira mestra, Olinda era a personificação de um dinossauro, defensor de trabalhadores, dos seus direitos e luta por garantias que lhes melhorassem condições dignas. Por mais contundente que fosse, numa personificação de "anjo" para uns, e "demónio" para outros (até pela sua condição de mulher em cargo de chefia, em década de 70), certo é que a "instrução" que recebia como a sua discípula mais direta era: apoiá-los, naquilo que pudéssemos como facilitadores de trabalho, porta-vozes dos seus descontentamentos e ponte, para o diálogo. Mesmo nas presenças obrigatórias que me eram impostas fazer em plenário de trabalhadores, registando (a descoberto) o que por ali se dizia, o objectivo principal era perceber os pontos em que tínhamos que corrigir e melhorar.

    Em viragem de século, como mais de uma década passada, certo é que esses princípios enraizaram. Se para uns a forma como me coloco perante a vida será a de "condescendente", para outros (mais astutos e entendidos) a conotação será mesmo enxergar-se um pedacinho do que é ser-se humano, o desassossego, a curiosidade pelo mais, a conquista pelo melhor (que pode mesmo ser o que existe dentro de cada um), num percurso de vida feito de forma invulgar. Apercebia-me disso na reunião em que participava e era liderava por jovens com a mesma crença e paixão que afinal não tinha ficado presa no tempo. Cheios de bom senso, agradeciam a velhos dinossauros que participassem e a outros, veteranos também, pediam de forma humilde que partilhassem experiências e vivências dos anos em que presidiam ao ato de votar, tantos anos como os que tinham a nossa democracia.

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    Impossível naquele momento não invocar a memória de Olinda, que sinto se orgulharia por me ver ali sentada num feito de que até ela própria duvidaria. Em coisas que lhe terei falhado, nesta quase lhe senti a presença e o gosto por ver a sua discípula ter coragem de dar este passo e também ao ouvir pessoas do seu tempo que continuam na defesa das mesmas crenças que foram as suas, conforme me foi permitido assistir e porque comungavam de discursos parecidos.

    Amanhecia assim o dia 1 de outubro. No raiar da manhã apresentava-me na sala para onde fui destacada. Começava os ensinamentos e uma experiência única- ser parte integrante do processo democrático em que mais acredito. O ponto inicial seria o controle em minúcia a tudo o que ia ser determinante para o exercício livre de voto, que desde o primeiro momento exigia o consenso de um grupo de pessoas heterogéneo: em ideologias políticas e em idade. Assegurada que estava a liberdade de todos nós, cidadãos, a porta abria e a vida começava a passar por ali em pedacinhos de todos nós que fomos, pedacinhos de todos nós que somos e pedacinhos de nós que nunca saberemos se algum dia chegaremos a ser.

    Ao longo do dia apercebia-me que votar, felizmente para tanta gente ainda é um dever cívico. Por trás de uma urna, na tal vida que nos passava perante os olhos, foi-me permitido fazer aquilo que sempre tinha exigido para os meus patriarcas que iam definhando em capacidades físicas e até motoras: o apoio aos mais frágeis, assegurando-lhes a dignidade e o direito de escolherem o que era de sua vontade, numa mesa de consenso uníssono, onde acima de tudo éramos seres humanos. O relógio ditava as 19H00. A porta fechava-se e a uma dada altura, à volta de uma mesa via 5 pessoas que para lá das forças políticas que representavam, mais não eram do que cidadãos de bom senso que percebem que os números representam escolhas livre e falam por si. Sejam ou não da nossa vontade são resultado puro da democracia.

    Com a sensação gratificante de dever cumprido, a caminho de casa reflectia sobre o estado de espírito que me invadiu durante todo o dia em que estive por trás de uma urna: senti-me respeitada como pessoa, pude ser alegre como gosto de ser, vivi no seu todo o espírito de pertença a um grupo, vi a democracia funcionar na sua plenitude e acima de tudo - fui livre como cidadã e eleitora também.

    Obrigado, a quem me cedeu o seu voto de confiança num convite para mim inusitado, mas tão gratificante. Obrigado também a ti, Olinda e sim, mesmo num corpo de mulher madura está lá a jovenzita a quem sempre será preciso ralhar mas, tal como dizias: também sempre pronta a aprender, como quando te estendia os rascunhos acompanhados por um - "corrija e eu volto a fazer". Terá sido isso que me fez chegar até aqui: errando, corrigindo, aprendendo, participando em pequenas mudanças que sejam mas, acima de tudo, lutando (da melhor forma que sei) pelo meu direito à liberdade, em democracia, em responsabilidade, em civismo!

    Por: Glória Leitão

     

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