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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 31-07-2017

    SECÇÃO: Crónicas


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    A casinha que em mim morava

    O "Papi Leon" tinha-me enviado uma tela pintada pelas suas mãos de artesão, de sonhos. Quem a trouxe de terras de Moliére, era portador da sua mensagem - que ela simbolizasse a casinha com que eu um dia sonhasse para mim. Certo é que no cantinho de um "apêndice" da casa modesta, que era de Modesto, pendurei esta tela junto aos pequenos tesouros que naquele pequeno espaço me davam os bons dias, as boas noites e também me ajudavam a continuar a acreditar.

    Muitas vezes fitava a gravura que tinha vindo carregada de carinho e questionava-me: "será mesmo possível que um dia eu viva esta experiência de encontrar um cantinho onde me seja permitido abrir a casa que em mim morava?". Desistia muitas vezes desse pensamento porque seria o mesmo que desejar a partida dos patriarcas. Não posso deixar para trás o que a vida de forma dura me mostrou na primeira pessoa e que um provérbio aborígene tão bem traduz em poucas palavras: "Somos todos visitantes deste tempo, deste lugar. Estamos só de passagem. O nosso objetivo é observar, crescer, amar… E depois, vamos para casa".

    Depressa, demasiado depressa (para quem tem fortes laços de sangue), estas partidas surpreendem-nos. Partia a matriarca e eu, lá no cantinho onde colava tudo o que me fizesse prender à vida porque um dia ansiava, deixava de fitar muitas vezes a tela do Papi Leon, que mantinha pertinho de mim e ao alcance do meu coração. É que isso também significava que ao aceder a este desejo seria o mesmo que esperar a partida rápida do patriarca que de tão simples, grato e com novo apego à vida (mesmo tendo assistido à partida da sua companheira de mais de 58 anos) nos fazia querer retê-lo o maior tempo possível entre nós.

    No tabuleiro de xadrez que é a vida, o xeque-mate levou Modesto. Estava finalizado o ciclo que me tinha feito decidir ficar. Foi chegada a hora para que de novo, embalasse haveres, conquistas e pertences - escassos, no sentido físico, mas riquíssimos em aprendizagem. Dez anos a construir dentro de mim uma casinha levou-me a perceber que precisamos de muito pouco para ser feliz. Aqui, gosto de pensar que Modesto partiu mas também ele aprendeu que o tempo mudava as coisas. Se dantes, em passados em que Lares para acolherem idosos eram escassos ou raros, havia sempre alguém que ficava ali, a fazer companhia até ao fim de ciclo (se calhar até por uma questão de fé, ou "vergonha popular", abnegava-se) e depois alguma coisa se arranjaria para quem por ali ficava.

    No "cuidada de ti filha", vinha implícita a compreensão (nunca tardia), do motivo porque assistia à minha recusa em parar, embora sempre de olho em cima do seu bem-estar. Terá sido por isso que a sua partida não me deixou "só", dentro de mim. Sentia que sempre iria ter o seu apoio (pois nem o céu será o limite de qualquer pai mãe que nos conforte sentir lá, nas Terras da Paz). Nem um mês se passava depois desta perda insubstituível e a Hermínia ligava-me num final de dia dizendo-me - "Glória, parece que há uma casinha vaga. É naquele lugar onde uma vez tivemos que entrar em serviço e você exclamava que aquele tipo de casa era o seu rosto". Um dia passou depois deste telefonema para que eu entrasse num espaço onde senti ter "chagado ao meu lar". Era ali que iria poder colocar a tal casinha que dentro de mim fui construindo e que lá cabia no seu todo.

    TELA DE LEON DZIMBALKA
    TELA DE LEON DZIMBALKA
    Grata à vida, grata a uma rua que me tinha visto crescer e que me recebeu de novo passado muitos anos, tinha chegado a hora de novas mudanças (quando muitas vezes até nos fazem pensar que já não seriam possíveis). Dignamente e de saco às costas aí vinha ela, a mulher que se tinha encontrado dentro de si mesma. Lembravam-me as palavras do meu pai quando assentou arraiais em terras do Lidador - "a nossa terra é aquela que nos dá de comer" escolhendo-a como a terra a quem se oferecia como última morada. Por nos ter educado assim, terá sido por isso que esta casinha, onde agora eu ia poder morar (que por coincidências, ou não, tinha vindo ter comigo), ficava localizada em "terras que me dão de comer".

    Uns dias depois, quem autorizou para que me fosse confiada a chave explicava-me a história original daquele simpático local - era ali que como casal tinham começado um novo projeto de vida, um novo projeto de família. Ficou-lhes o carinho por aquele espaço e terá sido por isso que no seu restauro lhes deram aquele estilo de glamour numa forma de arquitetura simpática e acolhedora, onde se via terem privilegiado a privacidade de quem também escolhe (e mesmo que outra escolha não lhes reste) viver de forma humilde e digna.

    Não desistindo de aprender, a lição de Mia Couto (o importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós, a casa mora) acompanha-me todos os dias em que agora e a pé, desço e subo uma costa, em que o castelo serei mesmo eu. Nesta caminhada sadia de encontro ao meu trabalho hoje, em pensamento, vinha-me à lembrança uma outra lição que me tinha sido prescrita em 2010 como leitura aconselhada para início de uma nova caminhada que me fez chegar até aqui - Fernando Pessoa, a quem dão autoria das pedras, que poderão ser as do caminho que cada um à sua maneira trilha:

    Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,

    Mas não esqueço de que a minha vida é a maior empresa do mundo…

    E que posso evitar que ela vá à falência.

    Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver

    Apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.

    Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e

    Tornar-se um autor da sua própria história…

    É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar

    Um oásis no recôndito da sua alma…

    É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.

    Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.

    É saber falar de si mesmo.

    É ter coragem de ouvir um "não"!!!

    É ter segurança para receber uma crítica,

    Mesmo que injusta…

    Pedras no caminho?

    Guardo todas. Um dia vou construir um castelo.

    Por: Glória Leitão

     

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