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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 31-03-2017

    SECÇÃO: Crónicas


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    Lindinha e o patrão que era modesto

    Encontraram a pessoa com o perfil adequado… Tem 32 anos, experiência, mas há um senão". Confesso que fiquei ansiosa perante este "senão". Teria que sair mais cedo? Não poderia começar no momento em que era precisa? Teria alguma limitação física que condicionasse as tarefas que a esperavam? Foram segundos o tempo de espera para ouvir do outro lado da linha: é uma pessoa de cor. Fiquei estupefacta com este senão e retorqui: isso é algum senão? Atónita quando me responderam - eu também acho isso só que me disseram que infelizmente há famílias que não aceitam uma pessoa de cor de pele diferente dentro de portas.

    Mexeu comigo esta questão e quando chegava a casa punha a questão ao patriarca. Claro que recebi como resposta que não havia problema algum. Com a sua anuência, entrava dentro de portas a "lindinha" de um homem a quem ela se habituou a chamar modesto. E esta jovem, que afinal tinha poucos mais do que 20 anos de idade vinha colorir a vida do "patrão", como lhe chamava a colega da manhã conseguindo com isso tirar um sorriso alegre a este homem de mais de metro e oitenta que começava a ceder ao peso dos seus 84 anos.

    E mudou a vida naquela casa humilde, de gente honrada que tinha vindo de "terras do marco e de canas às vezes". Desperto pela manhãzinha, lá esperava ele pela sua Fatinha, que lhe trazia alegria, autoestima, fado e até dança em momentos muitas vezes hilariantes que faziam com que o tempo voasse até chegar a sua Rosinha que lhe fazia companhia até à hora da sua sesta. Depois ele sabia que a porta se abria para entrar a sua "lindinha" que lhe trazia histórias da sua terra Natal - Cabo Verde. Trazia-lhe também serenidade e a doçura do que poderiam representar os seus dezanove netos e três bisnetos em uma pessoa só e que lhe ficava à distância de um breve chamado.

    PINTURA CÂNDIDO PORTINARI
    PINTURA CÂNDIDO PORTINARI
    Também lindinha se deixou seduzir pelo encantamento que transmitia a humildade de modesto, porque agradecia sempre tudo, mesmo que traduzido em pequenos gestos. Em tempos em que parece ter entrado em desuso o "bom dia" e o "obrigado", era impossível que de tanto escutar estas palavras ficássemos indiferentes ao seu significado. Terá sido por isso que a todos custou perceber que coisas há que não dependem da mão ou vontade humana. Fica fora do nosso alcance impedir a corrosão da máquina que interiormente nos comanda.

    Se modesto tinha ficado praticamente 57 anos sem entrar num hospital de repente a precariedade de saúde fazia com que a sua vida se virasse de cangalhas e nos últimos tempos o hospital passava a ser o único horizonte que ele enxergava quando tinha que sair fora de portas. Amado por quem escolhia a profissão de cuidadoras, lá ficava tudo de plantão até se terem notícias da sua alta. Todos o queriam no seu cantinho, aquele que aprendeu a ler com os pés, tendo em conta que a visão lentamente já se tinha ido. Ficava-lhe também o ouvir, através das vozes que ele aprendeu a identificar.

    O tempo, implacável, fazia mirrar o "pilar" que, cada um à sua maneira, aprendeu a respeitar. Mais do que filha - espectadora, dava-me conta que modesto ia-se curvando, até para receber o carinho que lhe era mais do que devido e nem isso ficaria por saldar na generosidade com que a vida o tinha contemplado. Se sair de casa pela manhã se tinha tornado gratificante pelo jovial "bom dia patrão", que vinham através de uns olhos azuis, da cor do mar, já em final de dia recebíamos a paz que vinha de um quadro idílico - a lindinha que divertia o tal patrão, que era modesto.

    Cada dia que ia passando e que me habituava a encontrar aquela jovem de cor diferente interiorizava as palavras sábias de Nelson Mandela que se extraem de "Long Walk to Freedom" (1995): "Ninguém nasce a odiar outra pessoa pela cor da sua pele, pela sua origem ou ainda pela sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar". Felizmente que modesto tinha "bebido" destes princípios e a porta se tenha aberto para a sua "lindinha", que muito para lá da cor da sua pele, tinha sido ensinada a amar, amando-o, como um avô.

    Aos oitenta e quatro anos de vida repleta, por uma equipa de cuidados paliativos era sentenciada a falência de órgãos vitais, que no fundo de cada um dos que rodeavam este "patrão que era modesto" (por estar sempre grato a cada gesto de respeito que se lhe dedicava), ninguém queria aceitar. Ao "obrigado filha", cada vez que lhe socorria em insignificantes coisas que fossem, só lhe podia responder mesmo: "obrigado nós, por ser nosso pai". A última lição que lhe recolhi foi mesmo perceber que o que levamos da vida que nos estiver destinada é o que "tivermos sido" e o nosso nome. Emocionava quando em episódios de urgência lhe perguntavam como se chamava: António Modesto Teixeira Pinto Leitão, respondia orgulhoso, de si!

    Por: Glória Leitão

     

     

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