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    Arquivo: Edição de 18-06-2014

    SECÇÃO: Crónicas


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    Figuras geométricas

    Frederico Garcia Lorca achava que «o teatro é a poesia que sai do livro e se faz humana». Um pensamento, acima de tudo, é pessoal. Alguns que encontramos convergem com aquilo que pensamos ou, ainda, servem de desafio mental, para lhes encontrarmos outra perspetiva. Este é um desses, pois já eu pertencerei ao grupo das pessoas que gostam de colocar os humanos e os sentimentos “humanos” e até “desumanos” dentro dos textos. Foi esse sentimento que me despertou o apelo de uma jovem que após a sua licenciatura escolheu ser tatuadora – a sua paixão. A uma dada altura questionava-me porque era tão hostilizada pela sociedade e isto pelo simples facto de ser uma pessoa tatuada, ela também.

    Olhei-a e a primeira coisa que me veio à ideia foi perguntar-lhe porque se tatuava ela? Respondeu-me que era uma necessidade. Ela, e muito mais pessoas como ela consideravam que «o nosso corpo é um templo e nós somos livres para enfeitar as paredes». Dizia que cada tatuagem que tinha representava história, uma fase superada. Aumentava-lhe a confiança e fazia-a sentir mais “ela mesma” e isto porque não o fazia meramente por sentido estético e não a chocava nada um dia ser uma velhinha tatuada, que trouxe da vida marcas que não quis deixar esquecidas no tempo. Quem gostar dela terá que a aceitar assim. Quanto ao facto de ter escolhido ser “tatuadora”. aí foi esta jovem que me pôs a pensar – um artista, que é pintor, coloca a sua arte numa tela, que faz perdurar a sua criação. Um tatuador faz isso numa pessoa.

    Diz-me esta jovem que um pintor tem a alegria de saber que a sua tela fica pendurada numa sala, ou até num museu. Ela fala-me de uma outra alegria e de outro tipo de sentimento de realização – quando uma pessoa escolhe a obra desse mesmo pintor e põe na mão de um tatuador a responsabilidade de lhe colocar no corpo essa obra de arte. Aí é o “auge” de realização do tatuador, sentindo que o seu trabalho artístico sai das telas e passa a ser transportado num corpo que o exibe, para onde quer se desloque, devolvendo-lhe vida. Acha que pagar por uma tatuagem é reconhecer os anos que estiveram colados a uma folha a aperfeiçoar a técnica, o tempo e a alma que dedicaram e dedicam a cada centímetro e até milímetro de trabalho, árduo e exaustivo, que não permite falhas.

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    Quando me autorizou a consultar a página que tem numa rede social li a uma dada altura uma das suas expressões de revolta: «Apoiem aqueles que todos os dias se esforçam por fazer a diferença, numa área inferiorizada. Sempre fomos os que “não gostavam de estudar” na escola, os estranho que iam direitinhos para o desemprego. A verdade é que somos os que se impuseram, os que lutaram para fazer a diferença num mundo onde são todos iguais…». Não me podia surpreender quanto a isso – o mundo das minorias.

    No momento de refletir sobre isto eu estava sentada na bancada de um campo de futebol e bem no meio de uma claque, que sentia na pele a ostracização social, que os colocava num destes grupos, pela forma como eram encarados por uma sociedade padronizada, ou dita “normal” – também se atrevia a julgá-los: arruaceiros, o pessoal dos copos, os “gunas”.

    Mais ousada e para “vestir a pelo do lobo”, eu tinha-me desafiado a mim mesma, escolhendo passar uma tarde a recolher uma experiência, vivência e aprendizagem diferente. Como adepta simpatizante e amiga, integrava uma das três camionetas que a claque do clube da terra onde trabalho levava a abarrotar de gente para um jogo de consagração – independentemente do resultado, ali ia erguer-se a taça, acima de tudo de mérito e coragem, porque o jovem clube de Ermesinde, renascia e tinha ficado em primeiro na classificação da sua série. Se em 30/09/2011 eu já achava que «todas as empresas deviam ter um speaker», agora, em 2014, eu entendia porque é que os clubes precisam das suas claques.

    É castiça a forma como eles se organizam entre si, como eles se fazem respeitar e também como controlam os ânimos mais exaltados quando “saem dos estribos”. Percebi que os “gunas”, os arruaceiros, o pessoal dos copos, são acima de tudo pessoas – que se “despem” de pruridos, que saem das suas “zonas de conforto”, que “despem os fatos de trabalho”, que deixam para trás o “socialmente conveniente” e ali podem expelir toda a adrenalina que a vida e as suas contingências fazem conter. A não ser assim, porque teríamos nós que levar sentados nos joelhos crianças, doces e educadas que, naquele campo de futebol, se juntariam a tantas outras que nada tinham de anormais – eram amadas por pais solícitos que as vigiavam, atentamente, entre os hinos de incentivo que entoavam.

    Em momentos de reflexão que são possíveis mesmo num campo de futebol e no meio de uma claque desassossegada (como convém, segundo percebi), olhei para a bandeira que hasteavam, com argolas interligadas entre si. Olhando-as, fui colocando em cada uma delas os grupos estigmatizados das ditas minorias que me iam ocorrendo – o das claques, o dos tatuadores e logo de seguida precisei puxar do meu pequeno bloco para lhe ir adicionando tantos outros que me vieram à ideia e que se não são “freaks”, podem ser “coitadinhos”, como as pessoas de mobilidade reduzida, ou incapacitados. Depois temos os “perdidos”, aqui podem caber os toxicodependentes, os de orientação sexual diferente, mas também os divorciados, ou até os que escolhem viver em união de facto.

    Todos “pecadores”, perante uma sociedade que se convenciona seja normal e por isso se atreve a apontar o dedo e julgar, e humilhar, como fazem àquela jovem, em simples viagens de autocarro que faz na sua deslocação para o seu trabalho. Eu, “rotulada” socialmente num destes grupos de minoria, gostaria de dizer que acredito que a sociedade um dia ultrapasse os seus próprios preconceitos. Nem sequer digo – infelizmente não. Se fosse no estrangeiro, este tema pouco interesse suscitaria porque é difícil escolher grupos: proliferam pessoas diferentes por todo o lado e aí nem nos damos conta de “convenções sociais”. Agora, falamos de uma cultura que é nossa, enraizada em “feudos” culturais que nos colocaram em “celas de pensamento”, de forma geométrica quadrada, donde não nos atrevemos a sair, mesmo que o “carcereiro” já nos tenha aberto as portas há muito tempo.

    A ousadia de se ser diferente é um risco, pois até Jesus Cristo pagou um preço caro pela sua – num país que se identificará por dois triângulos sobrepostos em sentido invertido. Contudo, a um grupo, agora de maioria, deixou a mensagem que serão as minorias que precisam de interiorizar para não se sentirem ostracizadas por julgamentos de pessoas que sempre se julgarão superiormente diferentes: «Não julgueis para não seres julgados. Pois com o julgamento que julgais sereis julgados e com a medida que medis, sereis medidos». Já o Dalai Lama, diz que «pouco importa o julgamento dos outros. Os seres são contraditórios e é impossível atender às suas demandas, satisfazê-los. Tenha em mente simplesmente ser autêntico e verdadeiro…».

    Por: Glória Leitão

     

     

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