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Edição de 31-03-2024
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    Arquivo: Edição de 12-02-2014

    SECÇÃO: Crónicas


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    O tempo passa, a memória permanece

    Distanciavam-se dos sobressaltos da História e de qualquer dependência política as populações rurais, obrigadas a uma luta insana pela subsistência, partilhando, entre si e de aldeia para aldeia, conhecimentos, experiências e serviços mais comuns:

    – do sacerdote, que assistia espiritualmente as pessoas, celebrando missa, ministrando os sacramentos, presidindo a atos religiosos diversos;

    – do barbeiro, que era também tira-dentes e prestador de primeiros socorros;

    – do ferrador, que desempenhava as funções de veterinário, acorrendo a chamados em caso de doença de animais domésticos, para intervir em partos mais complicados, receitar preparados de ervas e/ou medicamentos;

    – do ferreiro, de cuja forja saíam os mais diversos utensílios em ferro como estrefogueiros (1), tenazes, ferraduras para “calçar” animais de trabalho, ganchas para cavar a terra, relhas para arados;

    – do sapateiro, que conhecia todos os pés dos seus clientes e fazia socos de cano curto (2) para andar na rua, socas abertas (3) para usar em casa e nas imediações, sapatos grossos, às vezes também chinelas;

    – do carpinteiro, que construía os carros de bois, fazia portas e janelas, escanos e bancos para os lares, mesas, bancos de correr e toda a sorte de objetos em madeira;

    – do torneiro, que fazia fusos para as fiandeiras (4) e piões para o rapazio;

    – do capador: chamado sempre que era necessário castrar berrões (5) ou porcas destinadas à ceva (6) e que, por isso, não podiam emprenhar;

    – do latoeiro, que vendia, soldava e endireitava recipientes domésticos como cântaros, panelas, tachos, funis, crivos e formas para os doces das festas;

    – do peneireiro, utilíssimo para consertar as peneiras imprescindíveis na preparação do pão doméstico;

    – do sombreireiro, a quem entregavam os rijos guarda-chuvas de antanho para compor varetas que fortes rajadas de vento torciam ou remendar o pano que um mau jeito qualquer abrira;

    – do amolador, que afiava, no seu torno de esmeril, facas, tesouras e outros objetos cortantes;

    – do alfaiate, que confecionava casacos, calças, jalecos (7);

    – da tecedeira, que transformava os novelos de linho ou de lã, que as donas de casa lhe entregavam, em lençóis, toalhas de mesa ou de rosto, colchas, cobertores, panos diversos, xailes, mantas rústicas mais conhecidas por mantas de farrapos (ou de trapos) e utilizadas para múltiplos fins;

    – da costureira, que tratava das roupas femininas e das camisas dos homens;

    – da parteira, chamada a qualquer hora do dia ou da noite, que assistia as mulheres nos transes da maternidade e por cujas mãos passavam centenas de recém-nascidos;

    – da benzedeira, verdadeiro repositório de fórmulas específicas para males do corpo ou do espírito, que conhecia as ervas e os chás e mistelas que deveriam ser aplicadas em cada caso. A estes devem juntar-se gaiteiros (8), zabumbas e tocadores de ferrinhos que, noutros tempos, animavam os bailes de domingo e as romarias que proliferavam nos cabeços sob diversas invocações de Nossa Senhora e em honra de Santos, já atestadas pelas medievais cantigas de amigo.

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    Por regra, estes ofícios e talentos eram complementares às atividades agrícolas, exercidos por pessoas que viviam na própria aldeia, em aldeia muito próxima à qual era enviado pedido por intermédio de quem tivesse que ir à localidade onde essas pessoas viviam; por ambulantes que vinham de longe, de povoação em povoação, pousavam, eles e seus pertences, em cabanal (9) cedido gratuitamente por um morador do lugar e ali atendiam os interessados nos seus préstimos profissionais. Os que vinham de fora eram pagos, normalmente, em géneros: os ambulantes, após a conclusão do trabalho e os que acorriam com certa regularidade, tais como ferrador ou capador, recebiam uma avença (10) cobrada anualmente, que poderia traduzir-se em alqueires de centeio, cestas de batatas, quiçá em litros de azeite ou de vinho.

    A separação entre o campo e a cidade não implicava qualquer tipo de hostilidade, apesar das nítidas diferenças no modo de viver. Não raro, havia, na periferia da vila/cidade, campos ou pequenas quintas onde a agricultura se praticava como em qualquer aldeia, com a vantagem de os agricultores terem, bem perto, estabelecimentos comerciais onde podiam adquirir sementes e utensílios diversos, enquanto os aldeões tinham que viajar a pé ou em lombo de burra com a perda de tempo e o esforço físico inerentes. As casas dessas zonas de acesso ao espaço urbano pouco diferiam das habitações aldeãs. No rés-do-chão, por baixo da área habitada, havia espaço onde criavam e guardavam animais e que, em parte, cediam às pessoas vindas das aldeias para recolherem as burras, mulas, éguas ou cavalos em que se faziam transportar. As famílias ali instaladas tinham, frequentemente, ligação a aldeias próximas e mesmo terras que cultivavam para consumo próprio, criavam e matavam porcos, faziam chouriças, salpicões, alheiras e outras variedades de fumeiro, curavam a carne na salgadeira, incluindo os presuntos que, terminado o prazo de cura, eram igualmente colocados por cima da lareira. De resto, seguiam muitos dos costumes das aldeias de que provinham e mantinham as ligações afetivas às gentes do campo.

    Os serviços de que as populações rurais careciam tinham, logicamente, relação necessária com os hábitos ancestrais; com o acompanhamento religioso, com as atividades agrícolas praticadas em cada época; com as precisões de cada membro da comunidade na saúde, desde a conceção até ao último alento, no relacionamento interpessoal, no vestuário e no calçado, na cultura e nos divertimentos; a manutenção dos animais fossem de trabalho, de criação para consumo ou de companhia. Os últimos não eram objeto de grande atenção, não eram levados ao veterinário ou a quem desempenhasse idênticas funções, quando muito recebiam mais afagos e uma alimentação menos descuidada em caso de doença declarada. Os suínos, que eram indispensáveis para a alimentação familiar ao longo de todo o ano, requeriam, consequentemente, cuidados atentos na comida e na saúde, na reprodução, e no asseio possível dos respetivos estábulos, porque o seu estrume era indispensável na fertilização das terras. Nem todas as famílias matavam porco, porque não tinham com que os sustentar, outras sacrificavam mais do que um quando possuíam mais terras e mais braços para as trabalharem, fossem filhos ou vizinhos que colaboravam em troca de trabalho correspondente ou de outras retribuições.

    Nem sempre os produtos cultivados foram os mesmos. O centeio é, sem dúvida, o mais antigo, porque se adaptou melhor do que outros cereais, como o trigo, à pouca rentabilidade do solo. A batata, que se tornou essencial na alimentação de pessoas e animais, só foi introduzida no país no século XVIII. Antes dela, a castanha teve papel fundamental, daí a abundância de castanheiros que ainda se mantêm em muitas aldeias da chamada Terra Fria Transmontana. «Apesar dos produtos novos, a variedade de recursos também não tem aumentado. Se a cultura do milho e sobretudo da batata são recentes, restringem-se a áreas reduzidas. Não se sabe se o seu rendimento equivale ao que, outrora, se retirava dos castanheiros, abundantes em toda a província, mas que se veem hoje muito reduzidos, devido à moléstia que os dizimou drasticamente desde o fim do século XIX. O recurso alimentar que a castanha representava, desde o fundo dos séculos, poderia ter um valor restrito para exportação mas contribuía para sustentar muitos camponeses pobres. O resto dos soutos, outrora tão extensos, reduz-se hoje aos que se encontram ainda em Vila Pouca de Aguiar, nas faldas das Serras da Coroa (zona de Vinhais – n.a.) e de Montesinho (zona de Bragança – n.a.), entre Mogadouro e Macedo e sobretudo em Carrazedo de Montenegro». (11).

    A indumentária do transmontano foi confecionada, durante séculos, à base de lã e de linho, embora tenha sido muito rentável, por isso muito generalizada entre os séculos XVI e XIX, a cultura do bicho-da-seda. Em quase todas as aldeias transmontanas, foram abundantíssimas as amoreiras, de cujas folhas se alimentava o bicho-da-seda na sua fase larvar. As larvas produziam fios de seda que iam formando casulos. Estes eram, em seguida, vendidos para manufaturas que deles extraíam o precioso fio. As moléstias, que atingiram essa criação geraram enorme desemprego e, a curto prazo, o seu fim. «Também em muitas das terras dela há grande e considerável criação dos bichos-da-seda, que muito facilita o grande número de amoreiras de cuja folha se alimentam: o trabalho dos bichos se reduz também a vários géneros de sedas que, nesta comarca e província se obram por seus naturais, em particular na cidade de Bragança e vila de Freixo de Espada-à-Cinta aonde se tecem veludos rasos, felpas, pinhoelas, gorgorões, tafetás dobres e singelos, mantos, buratos, fitas, panos de peneiras, meias de seda, picotilhos e outras drogas de que se provê o Reino…» (12). Desde a 2ª metade do derradeiro século, muitas donzelas deixaram de se preocupar com o chamado bragal, conjunto de roupas de cama e mesa que levavam consigo quando casavam, que elas e suas mães preparavam, mandavam tecer, a que faziam a respetiva bainha e, frequentemente, guarneciam com renda e bordado. Todavia, muito antes, quando o linho deixou de se cultivar e os rebanhos quase desapareceram, esse trabalho de mãos e de sonhos ficou prejudicado, embora não tivesse desaparecido. Quem não tinha ovelhas, comprava a lã que era lavada, escarramiçada (13) e fiada antes de ser tricotada ou entregue à tecedeira. Os bragais eram, na sua maioria, preparados desde a infância, e tinham o duplo objetivo de prover o futuro lar com o essencial de cama e mesa e dar às jovens um conjunto de aptidões para o bom desempenho do seu presumido estatuto de donas de casa.

    Trás-os-Montes é muito mais do que este modesto trabalho possa mostrar. Mas a reconstituição de tempos idos, ainda que sem o fôlego que para tanto se exige, é um exercício proveitoso e necessário.

    (1) Estrefogueiro – nome dado, no interior transmontano, a um objeto em ferro que é colocado ao fundo da lareira, constituído por duas barras verticais paralelas que assentam no chão e outra horizontal entre elas, a alguns centímetros do chão. Serve para elevar a lenha permitindo que arda mais facilmente e que uma pessoa possa regular a queima.

    (2) Socos (de cano curto) – tamanco vulgar com piso em madeira de amieiro muito comum na região.

    (3) Socas abertas – de piso semelhante aos anteriores, mas sem cano e mais leves para descanso dos pés.

    (4) Fiandeira ou fiadeira – mulher que, servindo-se de uma roca e de um fuso, transformava a lã em fio. Na aldeia, todas as mulheres eram fiandeiras.

    (5) Berrões – porcos reprodutores.

    (6) Ceva – última fase da engorda dos porcos, mais ou menos desde o fim do verão até à matança.

    (7) Jaleco – colete de homem.

    (8) Gaiteiro – tocador de gaita de fole noutros tempos usual em toda a Terra Fria transmontana.

    (9) Cabanal – Espaço coberto a abrir para o caminho público, muito usado para guardar as alfaias agrícolas.

    (10) Avença – Retribuição combinada entre o prestador de serviços e o cliente, paga anualmente, em dinheiro ou em qualquer género, normalmente em cereal calculado por alqueire.

    (11) “Portugal – O Sabor da Terra”, de José Mattoso, Suzanne Daveau e Duarte Belo – transcrito de “Corografia Transmontana” do Pe. António Carvalho da Costa - Volume IV (1868). A 1ª edição data de 1712.

    (12) Idem, idem, idem, idem .

    (13) Escarramiçar – vocábulo utilizado para identificar o trabalho de limpar, esticar e alinhar a lã num artefato próprio.

    Por: Nuno Afonso

     

     

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