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    Arquivo: Edição de 12-11-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    Em torno da cultura

    “Cultura” é uma daquelas palavras que se usam a tempo e a destempo, a propósito de tudo e de nada, segundo a conveniência do utilizador ou para redimir um qualquer “lapsus memoriae” que nos assalte numa encruzilhada do discurso, desde que se enquadre nos dons do espírito humano.

    De todas as aceções – e são muitas, de facto – em que costuma empregar-se, situemo-nos naquelas que têm por sujeito uma pessoa ou a uma comunidade e que o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa regista como «conjunto de conhecimentos adquiridos por alguém, de experiências que permitem o enriquecimento do espírito, o desenvolvimento de capacidades intelectuais = instrução, sabedoria, saber», se atribuída a uma pessoa, por ex: “mulher de grande cultura” ou “património literário, artístico e científico de um grupo social, de um povo” tratando-se de um grupo ou de um país v.g. “cultura mirandesa” ou “cultura portuguesa” e ainda ou ainda “conjunto de costumes, práticas, comportamentos… que são adquiridos e transmitidos socialmente de geração em geração” quando se fala de uma herança de várias nacionalidades a partir de uma matriz comum: cultura greco-latina, cultura maia, cultura azteca, cultura europeia, etc.. No século precedente, a UNESCO instituiu locais e monumentos pelo mundo afora que, pela sua magnificência, originalidade, singularidade ou representatividade se distinguem e contribuem para engrandecer as qualidades excecionais do espírito humano sob a denominação de Património Cultural da Humanidade. Mais recentemente, foi criada uma nova categoria que engloba costumes, tipos de música e de realizações não materiais a que se deu a designação de Património Imaterial da Humanidade.

    Além das definições acima indicadas, há o que se convencionou chamar “cultura geral”, que o supracitado dicionário considera um «conjunto de conhecimentos gerais que abarcam vários domínios do saber, do enriquecimento do espírito… considerados necessários», descrição suficientemente elástica para que nela caibam conhecimentos inquantificáveis e indiscrimináveis. Quantos idiomas estrangeiros deverá dominar uma pessoa que se afirme possuir uma boa cultura geral? As chamadas Línguas Mortas (Latim, Grego Antigo, Persa Antigo, Aramaico, Indo-Europeu) estão incluídas nessa qualificação? Quem não conhecer os variadíssimos ritmos pop-rock não entra na dita cultura? As danças de salão têm lugar nesse conjunto? Porque não existe um curso superior de Cultura Geral? Porque um licenciado nessa hipotética formação estaria, à partida, arredado do mercado de trabalho porque não regulamentado, o diploma não teria outra utilidade senão embelezar a parede do quarto do titular ou ostentar a sua qualidade intelectual suspenso no hall da própria habitação, mas teria lugar garantido em tertúlias de desempregados cultos. Não obstante, um naipe de conhecimentos intelectuais acerca do que acontece à sua volta é indispensável, no mundo atual, a qualquer cidadão.

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    Diz-se que o desconhecimento das novas tecnologias de informação e comunicação impede que se adquira uma sólida cultura geral, chegando ao absurdo de considerar analfabeto quem não possua destreza na sua utilização, porém intelectuais de indiscutível craveira declaram continuar a usar papel e caneta para realizar as suas obras e outros mantêm-se fiéis ao uso das antigas máquinas dactilográficas, vulgo máquinas de escrever, e nem por isso o seu trabalho tem menos valor. Mas, como “não é o hábito que faz o monge”, também o acesso ao conhecimento, embora facilitado por esses meios eletrónicos e informáticos, não depende deles em exclusivo. Muito antes da generalização da Internet já existiam pessoas de vastíssima cultura e, na era atual continuam a existir.

    Nada justifica que se estabeleça uma relação de necessidade entre as noções de cultura e de instrução. Se admitíssemos tal relação, a cultura ficaria restringida aos meios urbanos enquanto as populações aldeãs receberiam a etiqueta de incultas pelo simples facto de serem pouco instruídas. Andaríamos, pois, muito longe da verdade. Em Portugal, ao longo de séculos, o povo desenvolveu valores culturais próprios, na cidade ou no campo, interagindo em certa medida mas guardando cada qual a sua vincada identidade. Nas construções, nos costumes, na maneira de utilizar a língua, na saúde, no lazer, no vestuário, na alimentação, as diferenças eram notórias e distintivas. Na aldeia, as famílias costumavam ser mais numerosas tendo em conta a precisão de braços nas atividades da agricultura. As casas obedeciam naturalmente às características dos lugares, à simplicidade e funcionalidade da vida campesina na construção, compartimentação e mobílias feitas localmente; os costumes refletiam a vivência da comunidade, baseada, sobretudo, nas relações sociais e na prática religiosa; a maneira verbal de se exprimir demonstrava a rusticidade do meio, guardava heranças de falares antigos, vestígios de léxicos desaparecidos e de parentela com outros próximos com pronúncia descuidada mas obediente ao código linguístico do país; no domínio da saúde, as infusões de ervas, os xaropes, as mezinhas caseiras, as parteiras, a aplicação de ventosas, de sanguessugas e outros recursos naturais substituíam o médico e a farmácia a que se recorria em última instância; as pessoas divertiam-se com jogos inventados em tempos remotos, utilizando materiais existentes (o pau e a pedra) e, mais recentemente, as cartas em jogos de importação urbana ou de invenção rural, realizados ao ar livre ou nas tabernas, formas lúdicas com instrumentos de trabalho como o ferro ou ingénuas formas de passar os serões como o jogo do anelzinho ou a descoberta da espiga de milho-rei no descaroçamento desse cereal, cujos vencedores eram premiados com beijos aos participantes do sexo oposto, os jogos de roda para os mais novos com modinhas de tempos idos e os tradicionais bailaricos nas tardes domingueiras e nas noites de verão entre a chegada dos segadores e o servir da ceia, as cantigas, algumas sobre contos tradicionais, amenizavam o trabalho no campo; o vestuário, confecionado a partir da lã das ovelhas ali criadas e do linho cultivado nas veigas, depois de convenientemente tratados em sucessivas etapas, da tosquia das ovelhas às mãos habilidosas das mulheres, da terra ao tear, os vestidos e o fato domingueiro, tecidos comprados na cidade e confecionados por costureiras e alfaiates locais; os alimentos consumidos provinham das espécies cultivadas e dos animais de criação, mormente as carnes de porco e o fumeiro que com elas se fazia consumidas a mando do calendário, as galinhas, os ovos e os coelhos em dias de nomeada, perdizes, lebres e outras espécies cinegéticas em casa de caçador em resultado da sua boa pontaria, refeições acompanhadas com o vinho da colheita e com o generoso pão de centeio ou de milho consoante as regiões, carne de bovino era um luxo a que muitos certamente nunca acederam, artigos de mercearia, tecidos e calçado de festa eram adquiridos na vila ou cidade mais próxima.

    A ida à cidade era um acontecimento raro, mais frequente em dias de feira (2 ou 3 vezes por mês) ou em qualquer outro dia, havendo necessidade urgente. Além de representar uma alteração nos hábitos das famílias, podia ser cansativa se a aldeia distasse muito da urbe porque, na maioria dos casos, tinha que ser realizada a pé, por vezes mais de duas dezenas de quilómetros. As mulheres, por natureza mais preocupadas com a aparência, trocavam roupa e calçado à entrada do espaço citadino, o que estabelecia claramente a diferença entre os dois modos de vida.

    Nas cidades, predominavam o comércio e a administração. Os alimentos eram comprados, em regra, na praça do mercado. Os vendedores adquiriam os produtos alimentícios em aldeias próximas ou aos camponeses que vinham vender-lhas no local onde se encontravam estabelecidos utilizando burros para o transporte. Em tempos mais recuados, à volta das cidades ou das vilas e mesmo dentro do espaço citadino, havia quintas e hortas onde também se cultivavam produtos agrícolas, se criavam animais e se matavam porcos e galinhas para consumo próprio e/ou venda a pessoas mais abonadas. As casas possuíam lareiras à moda da aldeia e fogões de pedra ou de ferro, alimentados a carvão e a lenha que os aldeões lhes vendiam, transportada em carros de bois. Havia tabernas como nas aldeias onde se vendiam petiscos e bebidas alcoólicas e os camponeses de aldeias diferentes trocavam informações e se entretinham a jogar depois de feitas as mercas e resolvidas as questões de natureza administrativa que ali os haviam trazido. As feiras de gado eram realizadas em lugar próprio para onde convergiam vendedores com os seus animais e compradores por necessidade ou para negócio. As tradições religiosas (ofícios e procissões) diferiam das realizadas nas aldeias somente pelas colgaduras com que os moradores enfeitavam as janelas das suas casas à passagem do cortejo.

    Mais do que pelos bens materiais, os povos distinguem-se pela sua cultura que influencia a maneira de estar na vida dos respetivos possuidores. A cultura portuguesa espalhou-se pelos quatro cantos do mundo o que muito honra os que fazem parte dessa vasta comunidade.

    Por: Nuno Afonso

     

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