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    Arquivo: Edição de 14-10-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    Leituras na diagonal

    Eu encaro as frases ou pequenas citações que vou encontrando pelo meu caminho, como “semáforos de reflexão”. Como gosto do trabalho de pensar isso completa-me imenso, tanto mais que depois lhe associo as imagens que me fazem sentido. Quando sinto ter conseguido o meu primeiro pensamento, aquele que sempre faço para mim mesma (onde me coloco também no papel da minha maior crítica), touché! – sinal de que encontrei o sentido na minha orientação da escrita, sinal de que aprendi mais um bocadinho e, aprendendo com os outros dessa forma, eu posso mudar sempre um bocadinho mais. Aconteceu isso com esta imagem de uma guitarra que se juntava ao anúncio de que a partir de 29 de agosto, no aeroporto Francisco Sá Carneiro, iria aí decorrer uma exposição de pintura cujo tema eram as guitarras, tudo enquadrado num evento cultural a que deram o nome “Tudo isto é…”.

    Para mim, guitarra leva-me sempre a Carlos Paredes (sem desprestígio de ninguém) porque, ouvindo-o a tocar sempre me dava a ideia de que ele conseguia que a sua guitarra falasse. Eu compreendo a humildade das suas palavras: «Já me tem sucedido fazer as pessoas chorar enquanto eu toco… E eu não compreendia isto, mas depois percebi que é a sonoridade da guitarra, mais do que a música que se toca ou como se toca, que emociona as pessoas». Certo é que esta imagem de guitarra que usaram para anunciar o evento despoletou em mim a curiosidade de tentar perceber se seria assim mesmo. Apanhei o metro e fui ao aeroporto procurar respostas que pudesse obter através das guitarras que lá estavam expostas e estilizadas à imagem de cada um dos artistas, personalizando-as. Corri o aeroporto de lés a lés e não pude ver as guitarras – estavam expostas sim, mas na zona de embarque onde o acesso é restrito a quem não pretende (ou não pode) viajar para lado nenhum e regressar de lado nenhum numa escolha que não possa ser um avião.

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    Para um problema teria que haver uma solução e a escolha foi mesmo vir tirar algumas das minhas dúvidas com “pessoas da música” que naquele momento podia encontrar num jardim simpático de Gueifães onde decorria a “Semana da Música”. Um evento lúdico organizado pela “Banda Marcial” que quis oferecer aos seus conterrâneos o que melhor sabem fazer – música, num esmero que se foi aperfeiçoando ao longo dos 176 anos da sua existência. Ali, numa noite serena onde me foi permitido “escutar o silêncio da música”, rodeada por pessoas que aderiam e iam enchendo as cadeiras que por ali se espalhavam, a uma dada altura falava com “entendidos na matéria” sobre o preciosismo da afinação dos instrumentos musicais. Confirmaram aquilo que eu pensava – tem que se ir atrás do som, seguindo-o, o que nunca é totalmente possível, pois é quase como seguir o “infinito” e, por vezes, só no último eco (aquele que a vida não dispersa) é que se agarra o “porquê” da desafinação, quando ela existe, e... corrige-se.

    Pego nesta minha ponderação e faço uma analogia com um balcão de atendimento aonde tive que me deslocar um dia destes para esclarecer um mal entendido que afetava uma pessoa que não tinha tempo de o fazer. Ao disponibilizar-me, para aprender, percebi que do conjunto de reclamações que tinham sido enviadas, tinham feito uma “leitura na diagonal” e adotaram como decisão o que lhes era mais conveniente. Às questões que me punham eu só respondia: «Por favor leia os documentos em anexo – está lá tudo», e mostrava e apontava as questões resolvidas. Fiquei triste ao ver que estavam formatados para ler na diagonal e a solução foi terem-me sugerido o “livro amarelo”. Aprendi que ao usar aquele livro seria a única forma de irem atrás do “som” expresso nos textos que estavam apensos à reclamação, até à sua última página, como se fossem atrás do som das palavras lá expressas – resultou, porque no tempo obrigatório de resposta para quem utiliza este meio de reclamação lá foi feita a chamada telefónica a pedirem muita desculpa porque efetivamente estava tudo resolvido – menos as ameaças feitas à margem da lei, as dores de cabeça, o tempo perdido e o dinheiro gasto!

    Numa vida cheia de senãos, não podemos desprezar o ditado de que “tempo é dinheiro” – as pessoas que sabem ler na diagonal tornam-se apelativas para quem, neste momento, não pode perder um cêntimo, arriscando más contratações. Daí que precisem de recorrer aos “experts” neste tipo de leituras. Um dia ouvia uma jovem lamentar-se que alguém tinha analisado o seu curriculum “pobre de experiência” pelo que lá estava descrito. Claro que se ela e tantos outros conseguissem passar para o patamar de entrevista poderiam explicar o tanto que já tinham assumido como responsabilidades de trabalho e de emoções a que a vida não os poupa, mas isso é irrelevante para este tipo de leituras. É apanágio ensinarem-nos que o tempo máximo de duração para este exercício são 30 segundos: preciosos porque são o tempo de se decidir um futuro, mesmo que isso passe por uma rotação vertiginosa de gente que se contrata agora por tuta e meia e que trabalha com a sensação permanente de ter a espada apontada à sua cabeça.

    Extrapolando, e porque somos humanos, a nossa tendência é focarmo-nos no topo daquilo que vemos, sem não nos darmos ao cuidado de enxergar os silêncios, que nos diriam tanto. Não perdemos tempo (nem teremos a coragem suficiente) para nos analisarmos à minúcia, seguindo o nosso próprio eco, que nos daria conta da nossa própria desafinação, permitindo-nos o ajuste e a correção. Com alguns laivos de sadismo gostamos de ler e interpretar a vida dos outros na diagonal e adotamos a verdade que nos dá jeito. No “vale tudo” dos tempos de hoje e de forma confortável seguimos a tendência de desempenhar o papel de jornalistas, de “adivinhos”, dos “homens do Direito» (que sabem ler as leis em livros que nunca serão taxativos como o Código da Estrada) ou ainda dos investigadores, que detêm a arte de cruzar as verdades de cada um e apanhar o “dito por não dito”, esmiuçando o sentido das frases, das palavras e se calhar até das letras. Não nos damos conta do saber exímio que isso exige – na afinação de verdades e na mestria da gestão das emoções, que a terem que ser levadas até ao limite será praticamente impossível que não deixem sequelas (lesões na alma), quando falamos de pessoas que terão que abrir mão do seu lado intrínseco e inexpugnável.

    Carlos Paredes poderia até ter razão quando dizia que era a sonoridade da guitarra que emocionava as pessoas mas eu não penso assim e isto em relação ao que quer que se faça pois “sempre serão precisas duas pessoas para dançar o tango” – uma pessoa que escreve tem que ter quem leia, um cozinheiro tem que ter quem deguste, um aeroporto tem que ter passageiros e até um mendigo tem que nos mostrar que neste país socialmente ainda está tanto por fazer. No que lhe dou toda a razão foi quando um dia disse: «Para se fazer música com prazer tem muita importância a amizade entre as pessoas. Não se pode fazer música friamente e com cálculo, profissionalmente, no mau sentido da palavra, a receber X à hora. Não pode ser assim». Este músico, por ser como era, tornou verdade uma outra coisa que também foi ele que o disse: “… Se eu tiver de morrer, morrerá comigo a minha guitarra”. Carlos Paredes, ao escutar-se através da linguagem do seu som, fundiu-se na sua guitarra, que tocava como se tocasse almas e penso que era isso que emocionava as pessoas e o tornou “exclusivo” em si mesmo.

    Por: Glória Leitão

     

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