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    Arquivo: Edição de 27-09-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    “Francisco”

    Já o mencionei, gosto de falar com as estrelas porque simplesmente, me escutam. Um dia em que estavam encobertas por nuvens que ameaçavam chuva, elas surgiram-me de repente, em partilha de redes sociais – Starry Night over the Rone, 1889, de Vicent van Gogh. Confesso que não acreditava no que via porque eu desconhecia este quadro e toda a força que daquela imagem emana ao ponto de me deixar extasiada. Associada à imagem desta pintura e num dos comentários foi-me permitido ler: «… Este é dos mais belos que existem…». Quem escreveu isto foi uma pessoa que se chama Francisco, e reconheci-lhe o rosto. Era médico e há muitos anos eu tinha tido a honra de o conhecer num consultório onde acompanhava uma pessoa que sentia precisar fazer a reconstrução de uma parte do seu corpo, que tinha perdido de forma irreversível.

    Para apoiar este caso procurava-se o melhor e Francisco era um deles. Estar naquele consultório havia de mudar a vida da pessoa que eu apoiava naquele momento porque ali, olhos nos olhos, aquele homem, que abraçava a profissão de cirurgião, pediu-lhe para que ela se olhasse e que se aceitasse na sua nova condição. Tal como nos disse, podia ser um “aproveitador” e ganhar o dinheiro que é fácil obter de quem precisa de uma ilusão que tudo repusesse o passado. Não era aquele o caso, pois implicaria anos de sofrimento, de angústia e de sonhos que se iriam desfazer porque o resultado não mudaria em muito a realidade que estaria sempre ali, nua e crua. Pensava ele que esse mesmo tempo poderia e deveria ser utilizado como uma reaprendizagem e um renascimento. Bendita prescrição porque certo é que foi isso que aconteceu e passados alguns anos, não só acredito como sei que a pessoa em causa nunca mais parou de conquistar e reconquistar novos dias e novos desafios numa coragem e determinação invulgar.

    Sendo certo que “viver” é um somatório de ensinamentos (que nem sempre assumimos como aprendizagem) também se torna certo que, em momentos cruciais das nossas vidas em que vulgarmente usamos o termo: “bater no fundo” ou “estar na fossa”, se nos decidirmos pelo conformismo fica tudo resolvido pois será lá que passamos o resto das nossas vidas mas, se optarmos pelo “alavancar”, aí o caso muda de figura e quando olhamos lá do fundo em direção à vida, a estratégia para a escalada será colocar pequenos calços, que subimos passo a passo. Cautelosos, paramos um bocadinho para refletir qual será o lado mais seguro, a pedra mais resistente e mais bem escorada para aguentar a próxima “investida” e continuar-se. Penso que não seria descabido de todo se aos calços a que me refiro, estabelecer uma simetria com rostos de gente corajosa que nos vem à memória, sorrisos, frases que algum dia nos disseram ou ouvimos dizer, música, elogios, críticas construtivas, sofrimentos que vimos superar e tanto mais que devolvem muito mais que uma crença: a vontade. Tudo isto, quando depois analisamos cá de cima e admiramos a nossa própria coragem de que não fazíamos ideia nos levaria a tanto.

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    Ao ir desfiando texto, que sempre tem rostos, muitos rostos, lembro que, no papel de espetadora, tinha acompanhado uma outra situação que me fez cruzar também com uma pessoa da área da medicina que tinha adotado esta mesma “prescrição” para uma situação diferente mas igualmente difícil – resultou: no amor a uma nova vida, na aceitação de uma nova condição, na conquista da autoestima. O povo costuma dizer que Deus deixou na terra “ajudantes”, e dotou-os com um dom que permite segurar nesta vida as pessoas que Ele escolhe para ficarem até à hora do chamamento. Porque é forte esse sentir e essa fé, a Igreja escolhe 18 de outubro como o “Dia do Médico” e esta data prende-se com o facto de ser o “Dia de S. Lucas”, evangelista, patrono dos pintores e da classe médic,a tendo em conta que também ele tinha sido médico e artista. Cada um agarra-se às suas crenças, muito próprias e por norma os médicos compreendem isso pois têm o hábito de sorrir, tolerantes (sem quase nunca questionarem), quando com convicção lhe dizem “Deus lhe pague e lhe dê muita saudinha”.

    A respeito da religiosidade achei graça ao que um dia li de Egas Moniz (o ainda, único médico português galardoado com o prémio Nobel em 1946), que mantinha uma relação de respeito para com o clero quando a uma dada altura terá confessado: «Nós, ateus, vivemos por vezes situações curiosas. Por exemplo, eu sei que a minha mulher terá um profundo desgosto se o meu funeral não tiver a presença de um padre». Ele fez-lhe a vontade com a condição de que fosse só um padre e isto porque a uma dada altura e se calhar mesmo com o avançar da idade as respostas continuam a dar lugar a novas perguntas e…nunca se sabe... daí que será melhor “jogar-se pelo seguro” – o lado ambíguo, que todos teremos um pouco. Nesta profissão é justo assumir que, por trás daquelas secretárias, nem sequer nos lembraremos que os tais “artistas de Deus” são, acima de tudo, humanos que na maioria das vezes, para nos tirar do tal “buraco ou fossa” nos dão de si aquilo que lhes é tão preciso e …precioso. A sua condição de humanos faz com que tenham vidas como as nossas, famílias como as nossas e padeçam também eles de “maleitas” tal como nós.

    A pintura de Vicent van Gogh foi a “alavanca” para esta reflexão que trouxe associada o Francisco. Quem a partilhou (sem saber que a vida já me tinha cruzado com ele), disse-me ser seu amigo definindo-o em breves palavras: «Um homem bom, correto, culto, inteligente…». Bateu certo e não sei de onde é o Francisco. mas o que sei é que fico contente por me ir lembrando que encontraria pessoas que abraçaram a Medicina como profissão e com características similares – um Joaquim em Gondomar, um Germano na Maia, um Nogueira em Ermesinde, um Sousa em Matosinhos, uma Isabel em Lisboa, etc., felizmente para os que já foram, os que cá estão e os que as próximas gerações possam trazer. Eu espero que Todos e através do tal “dom” continuem a contribuir para aliviar os sofrimentos (quando são inevitáveis) e aumentar a esperança de vida quando os diagnósticos assim o permitem e ainda que as investigações médicas e cientificas conduzam a bons resultados.

    Em tudo isto a ideia que ficou subjacente nunca foi o desmerecimento de quem quer que seja mas tão somente lembrar ainda que a entrega a esta profissão precisa de uma abnegação muitas vezes penalizadora em vidas e sentimentos que ficam para trás e não mais se recuperam. Torna-se lógico que poderíamos também encontrar um sem número de questões que faria de uns, anjos, e de outros, demónios, mas isso nunca será da minha competência avaliar e muito menos julgar. Certamente que se olhasse para a profundidade da mensagem do quadro “Guernica”, de Pablo Picasso, a minha reflexão poderia derivar para um lado mais contundente da vida. Para mim, felizmente e pela mão de amigos, foi a profundidade da mensagem de Van Gogh que me fez perceber que, à distância a que me encontro atualmente, aquelas estrelas já estão muito mais próximas, tão próximas que sentia tocar-lhes através do monitor do computador onde “desenhei” este texto.

    Por: Glória Leitão

     

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