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    Arquivo: Edição de 06-09-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    E tu, mãe?

    Há tempos atrás escolhi a foto do meu livro da 1ª Classe para ilustrar uma página, especial para mim. Associado às imagens que procurava estava lá a foto da ilustração de uma das páginas do livro e que me catapultou para escrever esta reflexão que andava a adiar. É provável que este adiamento se prendesse com o facto de andar na procura da resposta a esta pergunta, que uma das minhas filhas me fez há meia dúzia de anos atrás e a que só agora me sinto preparada para responder. De novo, é de forma consciente que partilho esta reflexão, tendo em conta que são incontáveis as pessoas com a função de pais que, mais tarde ou mas cedo, se confrontam interiormente com este tipo de questão. No meu caso, esta busca de resposta não é tão difícil assim, tendo em conta que já fui desatando alguns nós nas minhas crónicas

    Num dos meus apontamentos abordei o problema da entrega exagerada e até irresponsável das pessoas a uma carreira, por tudo quanto isso nos deixa em branco e que depois não se recupera, como quando ouvimos da nossa filha mais nova: «- Quem me criou foram os meus avós». Claro que sim, porque sou de opinião que só uma avó daria um amor semelhante ao de uma mãe, mas esta afirmação é injusta e até incompleta, tendo em conta que temos amas, famílias e até amigos que amam de igual forma. De todas as histórias que conheço e sustentam esta minha opinião, recordo a minha filha mais velha, que também teve a sorte de ter sido bem amada por um casal de amigos e era a Rosinha que lhe fazia as “melhores tortilhas do mundo”. Mesmo quando já não éramos seus vizinhos de porta de vez em quando lá ia ela, de propósito, dar-lhe um beijinho e pedir-lhe que lhe fizesse o seu petisco favorito. Ela não se dava conta do condimento que o fazia de sabor único: o carinho e o amor.

    A esta pergunta: «- E tu mãe?», preciso de juntar outra, feita pela minha filha mais nova: «- Porque me deixaste viver de uma forma tão intensa?». À questão inicial eu tive que me calar, porque não tinha a devida resposta mas a esta segunda a resposta foi imediata: «- Para viveres as emoções no teu tempo. Ganhaste-me 30 anos, porque só agora, com mais de cinquenta anos isso me está a ser permitido». Elas não sabiam que alguém tinha que ter cedido. Há 20 anos (e mais), era sensato e até cultural que fosse uma mãe. Falamos ainda de outras questões que não eram e não são de fácil decisão: a quem dar a vez? Em quem confiar para desempenhar o nosso papel de pais, na nossa ausência? As decisões são cruciais e variam na forma como desenhamos, estruturamos e moldamos o futuro para os nossos filhos. Decidimos se é para os preparar para abraçar o mundo ou para os deixar presos a laços de dependência familiar – como se fossem pequenos bonsais: as árvores que deviam seguir o seu percurso e crescer conforme a natureza lhes destinou, até aparecer o Homem que lhes interrompe este ciclo. Ao podá-las, desenhando-lhes formas, torna-as dependentes do seu conceito sobre a forma – um ato egoísta, feito em nome da arte e da beleza.

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    Eu, como mulher e mãe, para as minhas filhas queria um desenho diferente e isto porque tinha plena consciência de que se no meu caso já não ia a tempo de recuar, podia corrigir isso com elas. Eu tinha-me como exemplo porque fui criada numa geração tipo bonsai, com regras apertadas no que se refere à educação, à disciplina e até ao respeito, principalmente no tocante à escola. Valia o que nos era ensinado e aqui também nos era imposta (quase como verdade absoluta) a opinião que tinha que se adotar, mesmo divergente da nossa. Depois da escolaridade havia um crescimento de meninas e moças em que éramos protegidas do desconhecido. Àquela altura até compreendo a forma como se guardavam as meninas - de tal forma formatadas e encapsuladas que quando se recebia a ordem de partir isso levava-as ao encontro do conhecido (em muitos casos previamente destinado em cruzamentos de famílias) ou desconhecido – o conto de fadas, em que aparecia o tal príncipe encantado. Uma e outra situação davam para o direito ou para o torto, conforme a orientação de uma vida que nem sempre se faz em linha reta.

    Quando chegou a minha vez de ser mãe tornou-se mais do que sensato olhar para as minhas crianças e (acima de tudo) privilegiar-lhes o caráter, mais do que as roupas de marca. Deixá-las ser e viver de forma a perceberem que elas tinham a sua própria personalidade e seriam elas a trabalhar, de jovenzinhas para construir e desenhar o seu próprio caminho. Podiam divergir da sua professora, com educação e respeito, expondo os seus pontos de vista. Perceberam ainda que no mundo que também era delas e onde elas iam viver e conviver, havia regras que podiam quebrar e outras que não (com todas as consequências que isso lhes acarretaria). Aprenderam a andar cedo de autocarro e sabiam o que fazer em S.O.S – a prioridade dos passos a dar em caso de perigo. Foram ensinadas a conviver com gente diferente, para perceberem que o conceito de perfeição não existe e era isso que as esperava fora de portas. Viveram as emoções no tempo do seu tempo, como se de patamares de escada se tratasse. Quando pensariam que viviam sem para quedas enganavam-se porque lá estavam os pais atentos e prontos para o que desse e viesse e, bem lá no fundo elas sempre souberam e ainda sabem disso, pois ainda hoje é um pai ou uma mãe que tem o amor único e absoluto de se colocar numa troca de vida.

    Aos lamentos que vou escutando no meu autocarro por parte de pessoas que trabalham, eu sei que não foi e não é tarefa fácil para ninguém superar os medos de se ser pai ou mãe, de tentar perceber se está certa ou errada a linha de orientação ao alinhavar o futuro dos nossos filhos, ainda mais quando não temos forma de os proteger de sofrimentos que às vezes se tornam inevitáveis. Também e ainda quando não os queremos “podar” porque, nos nossos projetos não está a ideia de nos abrigarmos na sombra das suas hastes de bonsais - que por não poderem crescer em altura, normalmente lhes é permitido pela mão do Homem (que lhes castrou o destino), a extensão controlada em largura, como se esticassem os seus pequenos braços na procura da luz e da liberdade. Ao deixá-los crescer a direito, tornar-se-á mais fácil que se entrelacem e “encaixem” nos braços de outras árvores que terão sido orientados de igual forma. Alimentam-se, par a par com a mesma luz, partilham da mesma água e ajudam-se na sua sobrevivência e na sobrevivência da sua espécie. Não ficam dependentes de um podador, que por não ser imortal teria que interromper a sua tarefa, deixando sozinho o seu bonsai e, se calhar em idade tardia, lhe ser desenhada outra forma.

    Volvida a tal meia dúzia de anos em que me foi colocada esta pergunta: «- E tu, mãe?», penso agora estar capaz de responder: Eu? Num efeito “boomerang” aprendi com tudo o que vos ensinei e de tudo o que vos vai complementando como pessoas, numa vivência feita com as tais pessoas diferentes, que se vão cruzando na vossa vida e que foram ensinadas a respeitar. Eu? Percebi que não posso ter um mundo desenhado só para mim, que esse mundo vai continuar sempre cheio de pessoas diferentes só que, participando dele, eu posso (e devo) ter uma opinião e ainda que o “sim” e o “não” são palavras pequenas mas suficientes para mudar um caminho. No meu papel de mãe, aprendi que o amor não se mede por nenhum barómetro e há um ato de amor e de respeito muito grande que privilegiei nesses ensinamentos – filhas que não quiseram podar para si mesmas uma mãe bonsai. A terem feito assim fizeram-me perceber que também os filhos ao adotarem essa forma de amar, sem dependências, permitem que se refaçam novos trajetos de percursos interrompidos. Li de José Saramago uma frase que me tocou: «Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos» e isso, vamos sempre a tempo de descobrir.

    Por: Glória Leitão

     

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