Subscrever RSS Subscrever RSS
Edição de 31-03-2024
  • Edição Actual
  • Jornal Online

    Arquivo: Edição de 26-03-2013

    SECÇÃO: Crónicas


    foto

    Quem te empurrou menina?

    Hoje, em domingo de chuva muito miudinha ouvia uma notícia – uma pessoa conhecida da minha infância tinha desistido de viver e isto não estava a ser compreendido pelas pessoas que se interrogavam sobre o motivo porque teria ela desistido. Infelizmente, eu se calhar compreendi, porque senão ela não tinha escrito uma crónica há tempos atrás, “O Espectro”, a sensação de que estamos “mortos” por dentro, para nós e “mortos socialmente”, para os outros. É um caminho penoso e árduo e não me admira que haja pessoas que não aguentam e “quebram”.

    Por mais que tentem viajar dentro de nós dificilmente alguém “enxerga” e há muita gente que está só entre uma multidão, só dentro de uma família e só dentro de uma comunidade. A nossa tendência é adaptarmos as pessoas ao meio e não perceber que cada um tem o seu “modus operandi”, perante a vida – a sua forma de ser feliz, a sua forma de sofrer e até a sua forma de amar. O esforço que se faz para se dizer “sim” aos padrões dos outros para não sermos atirados para “fora da carruagem” são quase desumanos, porque cada um de nós tem uma intrínseca forma de ser e também ninguém terá culpa de ser como é. Para os crentes em Deus diz-se que somos obras criadas por Ele – que, se calhar para nos mandar “imperfeitos” e diferentes será para ver como nos “safamos” e também que tipo de generosidade, compreensão e espírito de entreajuda teremos uns para com os “outros”, o tal irmão que nem precisa ser de “sangue”.

    foto
    Às vezes costumo dizer que Deus, no tal juízo final em que nos irá receber para nos “ditar a sentença” sobre o destino que nos dará, pode ter contas muito diferentes das nossas e se calhar às vezes pode surpreender-nos com a sua “contabilidade” das boas e das más ações nesse seu “julgamento” a que estaremos sujeitos (aquilo que nos ensinam a temer), porque pesará pouco ou nada aquilo que teatralmente se fará para a sociedade que gosta de ser engalanar e embandeirar em grandes obras e grandes ações que nos deem prestigio, fazendo-nos “ficar bem na fotografia”. Mais, sem nos darmos conta e pelo peso do “estatuto social” ou, ainda pela força das nossas crenças religiosas, para nos mantermos no tal patamar de que não sabemos descer, por termos medo do que nos espera “cá em baixo” cai uma “cortina de silêncio” que se tornará pesada, demasiado pesada para uma pessoa carregar sozinha e aqui falamos da solidão interior, aquela que dificilmente ou quase nunca ninguém efetivamente deteta (as máquinas medem quase tudo, menos isso). Depois? É tarde, para o “outro” que nos escapou por entre os dedos mas também para nós, porque a partir dali também morre algo dentro de nós, pedacinhos que quebram e nunca mais colam, porque nunca mais haverá uma peça igual para substituir aquele vazio, onde fica alojado uma culpa, uma tremenda e penosa culpa.

    A ti em especial, menina da minha infância que eu via descer a escadaria de tua casa vendo-te como uma princesa em tempos em que ainda acreditava em princesas (que por serem bonitas e terem nascido em berço de ouro era já por si uma garantia que iam ser felizes para sempre, pensava eu), não te culpo e deduzo que quem te “empurrou” terão sido os teus motivos e também todos nós, a sociedade em que nos transformamos e em que vamos empurrando pouco a pouco os mais frágeis para o abismo. Eu, que há muito tempo deixei de acreditar na magia das palavras “para sempre”, só te posso prometer que vou continuar a fazer o que estiver ao meu alcance para que nada nem ninguém me detenha num propósito que estabeleci para mim mesma: trabalhar para reconstruir, para voltar a construir, provando que todos nós temos o direito de levantar cabeça e seguir em frente, evitando tudo por tudo para que não se aproveitem da nossa fragilidade humana para usar ou sermos usadas/usados como meros guardanapos. Faço-o por mim mas acima de tudo pelos que têm que ficar para trás, os que precisam andar num ritmo mais lento e mesmo pelos que (pelos seus motivos), escolhem desistir.

    Enquanto vou deixando sair este texto, ao som da “Bohemian Rhapsody”, penso que hoje em dia, em que morreu uma estrela, tenho a certeza que algures, nasceu uma nova estrela que irá encher no céu para onde gosto de olhar porque lá, está tanta gente em forma de pequenos pontos luminosos e a uma distância suficientemente grande para não serem machucadas pela mão implacável do Homem, identificado como ser humano. Deus? Na forma como gosto de pensar Nele acolherá as pessoas que a vida lhe devolve num abraço de pai, que não julga, nem castiga e em vez do “ajuste de contas” que nós sentenciamos Ele, dirá somente: «EU compreendo-te e agora estás em paz». Num ditado que ouvimos e que nos dias que correm é cada vez é mais pertinente – cada um sabe mesmo de si e só Deus é que saberá de todos. Nesta reflexão precisei de voltar a concentrar-me em algo que me “ilustrasse a alma”. Usar de novo uma imagem de Dali, onde identifico um lado místico e de uma beleza rara de um artista que afinal não era o “profano” a quem sevatribui um juízo de valor errado pela sua figura grotesca e chocante, diria eu, a que tinha acrescentado a imagem de um quadro seu que via exposto na porta do quarto de uma jovem, admiradora da sua arte. Arrepiava-me sempre que a olhava porque era uma figura de pessoa com a boca fechada por pequenos alfinetes espetados: a dor e o silêncio, dois condimentos terríveis mesmo para pessoas a quem é perguntado: «Falta-te alguma coisa?», e gostariam de dar como resposta: “Falta-me tudo!».

    Nesta minha caminhada pela vida e quanto mais vidas se vão cruzando no meu caminho há efetivamente uma coisa em que acredito cada vez mais: o silêncio – que cada um escuta dentro de si mesmo, que cada um encerra dentro de si mesmo e que nos empurrará para o lugar de cada um e isso sim, poderá ser o tal “para sempre”.

    Por: Glória Leitão

     

    Outras Notícias

    · O barulho das carroças vazias

     

    este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu Este espaço pode ser seu
    © 2005 A Voz de Ermesinde - Produzido por ardina.com, um produto da Dom Digital.
    Comentários sobre o site: [email protected].