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    Arquivo: Edição de 08-03-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    O silêncio das rosas

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    No final de dezembro do ano passado arquivava os 54 pedacinhos de escrita partilhados neste jornal até final de 2012. Escolhi para a capa deste meu dossier de arquivo a imagem com uma rosa e uma transcrição que tinha encontrado:

    «A escrita, ou a arte, para ser mais abrangente, cumpre funções que mais nenhuma área consegue cumprir. (...) Sinto que há poucas experiências tão interessantes como quando se lê um livro e se percebe "já senti isto, mas nunca o tinha visto escrito", procurar isso, ou procurar escrever textos que façam sentir isso, é uma das minhas buscas permanentes. Trata-se de ordenar, de esquematizar, não só sentimentos como ideias que temos de uma forma vaga mas que entendemos melhor quando os vemos em palavras. Trata-se também de construir empatia: através da leitura temos oportunidade de estar na pele de outras pessoas e de sentir coisas que não fazem parte da nossa vida, mas que no momento em que lemos conseguimos perceber como é. E isso faz-nos ser mais humanos.

    Na leitura e na escrita encontramo-nos todos naquilo que temos de mais humano». 

    [José Luís Peixoto, in 'Diário de Notícias (2003)].

    É desta forma que vou compreendendo porque me vai emergindo texto de uma forma que diria espontânea. Poderá dever-se ao facto de ter sido toda a vida uma mulher “operacional” – palmilhando as áreas de produção (12 anos numa empresa maioritariamente masculina e 14 anos numa outra maioritariamente feminina), partilhando o quotidiano de milhares de pessoas e adicionando-lhe mais de 30 anos a viajar em transportes públicos. Terá sido tudo isto que, ao longo dos anos me ensinou a aperfeiçoar a técnica da “escuta” (a ciência de se saber “calibrar” o que se ouve com o coração versus razão). Tudo traduzido em experiências únicas e riquíssimas de conteúdo, acrescentando-lhes os testes de resistência e tenacidade que dão para perceber de que “massa se é feita”.

    Dos benefícios recolhidos desta invulgar “escola” aprendemos a fazer o inevitável backup e com os preciosos ensinamentos de formação que fomos acumulando ao longo do tempo aprendemos a fazer o gráfico de Ishikawa – a fórmula para identificar e reutilizar a sucata da nossa vida transformando-a em algo benéfico, útil e produtivo no mínimo, para a sociedade. Será por tudo isto que quando dizem que sou uma mulher corajosa preciso de responder sempre – eu? Aprendi com as pessoas corajosas com quem tive o privilégio de trabalhar ao longo dos anos, porque é impossível esquecer e ignorar os milhares de rostos que intimamente sempre me irão acompanhar: homens e mulheres alegres e felizes mas também muitos sofridos pela vida.

    Lembro de forma particular as pessoas que deixavam filhos pequenos ao cuidado dos irmãos mais velhos que lhes davam o jantar e tinham a responsabilidade de os orientar nos deveres da escola, pois os pais trabalhavam em horários noturnos – em domicílios. Essas imagens não me saem da memória. Eram também estas pessoas que muitas vezes, sofriam a pressão própria de quem tem que cumprir exigências de produção, produzindo em “tempos” rigorosamente calculados por competentes cálculos de engenharia. Faziam-no com o coração partido porque tinham filhos, maridos e pais hospitalizados, esperando ansiosamente o final do horário de trabalho para os visitarem – a baixa médica era penalizadora para o seu orçamento familiar e era grande o sentido a responsabilidade que os ligava à sua empresa, no respeitante ao cumprimento dos objetivos da sua equipa.

    Destes registos de memória há um que fica sempre especial – um 8 de Março, “Dia Internacional da Mulher”, quando estas grandes “guerreiras” chegaram à empresa e foram recebidas pelas suas chefias que lhes ofereceram à entrada uma rosa vermelha que as emocionou. A muitas ouvia-se dizer: «Que bonito, nunca ninguém me tinha oferecido rosas!». Certo é que nesse dia houve duas empresas que se encheram com milhares de rosas que se espalharam pelos postos de trabalho, metidas em pequeninas garrafas de água que se adaptaram para jarras, impedindo que secassem. No final dos seus horários o destino destas flores eram os lares onde seriam exibidas como um reconhecimento que merecidamente tinham ganho como lembrança de um dia que também deveria ter 365 dias num ano.

    Há poucos dias, uma dessas mulheres que também tinha recebido a sua rosa partilhava uma pequena citação de Thomas Cray: «Fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas». Hoje, dia 8 de março, quem naquele dia ofereceu rosas, quem naquele dia recebeu rosas, ainda terá o seu cheirinho na palma da mão que levará ao coração para abrir lembranças de momentos que ainda hoje emocionam quem lá esteve e protagonizou este acontecimento. Ainda, neste dia, em que são lembradas as mulheres de todo o mundo eu gosto de pensar que se lado a lado (e nos casos em se tiver mesmo que ser), se por trás de cada “grande mulher” não poder existir o tal “grande homem” no mínimo, oxalá exista sempre alguém que as ajude a transportar a carga própria de quem é mulher e também homem, porque nos tempos porque passamos nem sequer imaginamos a dor e a angústia que os telhados de milhares de casas escondem, agravado pelo facto de terem lá crianças – filhos amados de forma igual entre os que podem e os que não podem, pois o amor, de dialeto universal, não tem mesmo classe social, raça, orientação política ou religiosa.

    Enquanto escrevia este apontamento ouvia uma notícia sobre escolas que já distribuem jantar para a família dos seus alunos mais carenciados e uma mãe corajosa dava a cara e dizia: «Eu não tenho vergonha de assumir que preciso de ajuda porque vergonha teria se o meu filho passasse fome somente porque eu tinha vergonha de pedir. Num outro extremo também e cada vez mais, não deve haver vergonha de denunciar os maus tratos que estão a fazer disparar os gráficos onde se regista o número de mulheres que sucumbem às mãos de quem um dia lhes terá feito a promessa de que as amariam ou, no mínimo, as respeitariam.

    Por: Glória Leitão

     

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