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    Arquivo: Edição de 17-01-2013

    SECÇÃO: Crónicas


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    O ouro

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    De há algum tempo a esta parte proliferam de forma até desmesurada as “casas do ouro”, aquelas que estão ali à “mão de semear” e que nos aliciam, com preços apelativos que já são colocados no seu exterior: quanto pagam pela grama dos pedacinhos de ouro, a última coisa a ser vendida por quem precisa. Há algum tempo atrás entrava num centro comercial e lá estava, instalada uma “ilha” onde as pessoas que estavam no atendimento me diziam à passagem – se quiser vender ouro nós pagamos bem. A isto só consegui responder: «– Oxalá eu nunca precise de vender ouro!”, e sempre me arrepio cada vez que vejo uma pessoa entrar naquele tipo de estabelecimentos.

    O testemunho mais sentido que ouvi a quem precisou de desfazer-se de todo o seu ouro foi rematado com «uma coisa de que sempre me vou envergonhar, mas não tinha mais nada que me socorresse para tentar travar o colapso da minha vida». De todas as peças que precisou de vender havia uma que a marcou: uma pulseira feita do cordão da sua avó que tinha sido partido em bocados iguais para ser repartido pelos filhos e ele, já no estatuto de filho mais velho e já como neto, tinha sido o fiel depositário daquela relíquia que acabou por ser vendida. Realizava desta forma todo o dinheiro que lhe fosse possível num fim que estaria destinado à fusão destas peças em lingotes que vão sempre representar o sangue, o suor e as lágrimas de alguém que precisava de sentir segurança com o seu ouro, ser admirado pelo seu ouro, ser reconhecido pelo valor do seu ouro e quase morrer de dificuldade para poder comprar o seu ouro, abdicando de coisas que poderiam ter sido mais úteis, benéficas ou compensadoras.

    Será da memória de muita gente o dente de ouro que gostava de se mostrar – um símbolo máximo de poder e que nos fazia rir mesmo sem vontade mas somente porque assim se poderia ver que éramos “pessoas de posses”. Será o mesmo ouro que atualmente tem uma cotação muito elevada e que fará sentir “nu”, comprometido e também com um terrível peso na consciência quem precisa de desfazer-se dele, um meio de se desfazer pedaços importantes da vida dos seus antepassados e das suas memórias – um pesadelo que oxalá ninguém tivesse que passar por ele, ainda mais que sabemos ser um passo que adia, mas na sua grande parte já não resolve nada.

    Também gostava de pensar que os nossos governantes estarão atentos quanto à urgência de legislar no que respeita ao licenciamento e supervisão destas casas “do ouro”, porque as pessoas em sofrimento e desespero devem ser poupadas e protegidas para que não caiam facilmente na mãos dos “agiotas” – as aves de rapina que cada vez são menos raras e não estão cotadas nos grupo dos predadores em vias de extinção, que sempre se irão alimentar da desgraça alheia, infelizmente com tendência a aumentar de forma exponencial. Tal como lembrava uma pessoa amiga, estas casas de ouro não são como as que antigamente se chamavam de “prego”, onde as pessoas iam “pendurar” os seus haveres mais precisos até que a vida melhorasse e podiam depois ir resgatá-los a troco do pagamento de juros pelo empréstimo de dinheiro, o que as ajudava a ultrapassar dificuldades momentâneas nas suas vidas. Agora não, vão-se mesmo os anéis e eu penso que o sentimento de culpa que cada um carrega se assemelha a algo que morre dentro de nós e não mais se recupera.

    Por outro lado, também a beleza do ouro nasce na sua grande parte da fusão destes pedacinhos da vida de muita gente, que voltam a renascer ao serem fundidos e transformados em novas peças novas que profissionais artesãos de nível exigente, minucioso e perfecionista dedicam à arte de trabalhar o ouro. Aqui, a minha eleição vai sempre para a filigrana e os pequenos corações portugueses, identificados no pescoço das mulheres “vianenses” – a beleza da arte moldada em corações dourados. Sem explicação plausível eu associo aqueles pequenos fios ao entrelaçado da vida, onde se cruzam sonhos, esperanças, derrotas, frustrações, conquistas e vitórias, ostentado em símbolos que se assemelham a um troféu, um prémio, um reconhecimento.

    Admiradora de arte, num gosto muito próprio, também me dá prazer ver e apreciar peças desenhadas com este metal nobre mas que nunca se identificará comigo – o meu sentir era que transportaria comigo sempre uma carga demasiado pesada. De alguma forma terei também encontrado uma explicação para esta minha “objeção” ao não fazer questão em ter nenhuma peça deste metal precioso (apesar do respeito que me inspira) e, se calhar, isso se deve a uma frase que li e que é atribuída a Tagore: «Enfeita de ouro as asas de uma ave e nunca mais voará no céu». Cada um interpretá-la-á da forma que se ajustar à sua própria maneira de ser e de encarar o mundo, o nosso mundo onde há gostos que não se discutem. Quanto a mim, que a vida ensinou que nem tudo o que reluz é ouro, que me enrijeceu os pés por forma a que os mantenha em terra, poupou-me contudo o coração que me ensinou a falar com as estrelas, a escutar o vento e a “voar”, para lugares em que eu ainda acredito, porque também estarão lá as pessoas em quem eu acredito… ainda!

    Por: Glória Leitão

     

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